Pré-estreia

Quem tem medo de Huppert?

Controverso, “Elle é carregado por performance magistral da atriz francesa

Por Daniel Oliveira
Publicado em 17 de novembro de 2016 | 03:00
 
 
 
normal

“Elle” começa com o estupro de Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), em sua casa. Nas próximas duas horas, a cena será repetida duas ou três vezes. Em cada uma delas, o diretor Paul Verhoeven (“Instinto Selvagem”) aproxima um pouco mais a câmera, representando a capacidade do público, com o passar do filme, de compreender melhor e enxergar as nuances e complexidades do que está acontecendo ali.

Só que é importante ressaltar uma coisa: o filme, que entra em pré-estreia na capital neste fim de semana, não é sobre estupro. Nem sobre a cultura do estupro. E, sim, sobre a cultura da violência. Um diagnóstico de como a sociedade contemporânea – em seus livros, filmes, videogames, séries, no seu dia a dia – associou patologica e irreversivelmente violência e prazer. E Verhoeven usa o estupro como imagem perfeita desse distúrbio.

Michèle, por sinal, é personagem ativa dessa cultura. Ela dirige uma desenvolvedora de videogames. E enquanto trabalha com seus empregados (que a odeiam) para tornar seu novo jogo ainda mais sexualmente violento e sanguinário, a protagonista investiga por conta própria a identidade de seu agressor.

E assim como no game e no estupro inicial, todo prazer em “Elle” envolve alguma forma de agressão, física ou psicológica. Michèle mantém um caso com Robert (Christian Berkel), marido da sócia e melhor amiga Anna (Anne Consigny). Seus empregados se divertem criando animações em que a chefe é violentada pelos monstros dos jogos. O próprio espectador foi ao cinema se entreter com uma história de estupro.

Num mundo em que violência é a linguagem, Verhoeven divide seus personagens entre agressores e vítimas. Exemplos desses últimos são Vincent (Jonas Bloquet), filho de Michèle tratado como capacho pela namorada, e Anna, a amiga traída.
E a protagonista se recusa a ser um deles. Assim como Beyoncé, que transformou a chifrada do marido Jay-Z no sucesso milionário de “Lemonade”, Michèle vai encontrar uma forma de explorar seu estupro a seu favor.

Essa abordagem do estupro como um jogo, quase um fetiche, é o aspecto mais controverso – e mais instigante – de “Elle”. Porque, por mais que Verhoeven seja um artesão competente na manipulação dos clichês de gênero – a trilha de thriller noventista, a câmera que se move pela casa como se alguém estivesse ali, o passado de violência da protagonista que se repete como um padrão, à la Catherine Tramell de “Instinto Selvagem” –, essa trama superficial de suspense psicológico é a parte menos interessante do filme. Especialmente quando o mistério é solucionado com pouco mais de 1h de projeção.

Porque, assim como Michèle controla sua história, quem está no controle – e quem interessa – é Huppert. Existem muitas atrizes excepcionais em atividade, mas a única que conseguiria fazer “Elle” funcionar é a diva francesa.

Isso porque Huppert entende Michèle melhor que o próprio filme. Ela abraça o cinismo amargo e implacável da protagonista, sem jamais tentar torná-la simpática, e suas tiradas ácidas que cortam seus interlocutores como um punhal afiado ditam o tom e o humor negro da produção. A cena em que ela revela para os amigos que foi estuprada e acaba tendo que consolá-los é exemplar: Michèle é um ser terrível, mas é divertida exatamente porque é ótima sendo terrível.

Esse humor negro do estupro como um jogo é o grande risco do longa. Você pode até rir e propor um olhar jocoso sobre a violência sexual – só não pode pedir que suas vítimas achem isso engraçado. No caso de “Elle”, o único motivo desse convite não ser completamente descabido se chama Isabelle Huppert. 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!