De onde vem seu interesse em estudar e inventariar os westerns brasileiros?
Isso começa como todo mundo: a paixão por cinema e, sobretudo, por western. Minha família morava numa cidade chamada Lucélia (100 km de SP), com 24 mil habitantes. Meu pai uma vez disse que lá tinham rodado um faroeste. Pra mim foi um choque, porque achava que faroeste era apenas algo de fora e e nunca tinha lido nada de algum feito no Brasil. O filme era "Homens sem Paz", de 1957. Comecei a reler alguns livros atrás de referências e descobri que os livros de história do cinema são enganadores em alguns aspectos, pois são escritos em cima dos grandes momentos, quase nunca dos pequenos. Um dia, comprando num sebo uma edição da "Cinelândia", me deparei com uma foto do filme. Depois eu consegui encontrar o ator, Mauricio Morey, que era fazendeiro no interior de São Paulo. Liguei para ele e perguntei se tinha mesmo feito um faroeste, e ele respondeu: "um, não. Fiz três". Aquilo mexeu comigo e essa frase foi o ponto de partida a tudo.
Quais eram esses filmes?
O Morey foi o primeiro caubói do cinema brasileiro, fez "Da Terra Nasce o Ódio" (1954), "A Lei do Sertão" (1956) e "Homens sem Paz" (1957).
A pesquisa surge quando?
Cada vez mais foi batendo em mim a intuição de que os filmes de cangaço brasileiros estavam diretamente vinculados aos faroestes rurais que eu tentava mapear. Passei a guardar qualquer pequena informação sobre faroeste brasileiro e filmes de cangaço. Em 2000 fui fazer mestrado e precisava escrever a apresentação da minha pesquisa. Eu queria pesquisar o "western feijoada". O que era uma pesquisa de curiosidade, de nerd, virou um trabalho acadêmico. Achava que chegaria a mapear apenas uns 30 filmes, mas quando cheguei perto dos cem, percebi que existia, sim, um universo significativo. Brinco que eram filmes que ninguém via, exceto o público (risos). A crítica ignorava esses filmes, por isso não encontramos muitos registros deles com facilidade. Nomes como Fernão Ramos e Jean-Claude Bernardet fizeram apontamentos importantes sobre o tema em seus escritos, mas não se aprofundavam porque não era foco dos estudos.
Então esses filmes foram produzidos em larga escala...
O período que eu considero que o western feijoada constituiu um gênero efetivo no cinema brasileiro abarca de 1953 a 1983. São três décadas, portanto. Durante esse tempo, não há um ano sequer sem que ao menos um western feijoada chegue às telas. São 95 títulos lançados, uma média de 3,2 por ano, com picos de dez em 1972 e oito em 1969. Depois disso, com o advento do pornô e a decadência do western nos EUA e na Itália, a produção por aqui praticamente secou, embora ainda tenham existido alguns faroestes pornôs, outras tentativas em vídeo, um filme em película do Tony Vieira em 1988 e o fatídico remake de "O Cangaceiro", pelo Aníbal Massaini Neto, em 1997.
Qual seria o marco inicial?
O primeiro que se encaixa é justamente "O Cangaceiro", versão original do Lima Barreto de 1953.
Quais as características do western feijoada?
Meu primeiro trabalho foi definir o que é western: é o Bem contra o Mal numa terra em vias de se tornar civilizada (estradas que levam de um lugar a outro, ferrovias, armas de fogo), num mundo quase moderno, mas que ainda não é o que entendemos como mundo moderno. Isso faz do filme um western. Muita gente diz que os filmes devem ser ambientados nos EUA, mas eu discordo. Você pega um italiano como "Django não Perdoa, Mata", que se passa na Espanha, e a maneira como ele é construído é essencialmente um western.
O conflito Bem contra Mal também é bastante claro. Até quando você tem o Clint Eastwood enfrentando o Lee Van Cleef num filme do Sergio Leone ("Por uns Dólares a Mais" e "Três Homens em Conflito"), e mesmo que o Clint seja um cara maldoso, é muito claro a quem devemos torcer. O que é faroeste, portanto, está na estrutura narrativa. Se você assiste aos filmes de cangaço, os elementos são exatamente os mesmos: uma terra em vias de desenvolvimento e progresso (no caso, o Nordeste brasileiro no passado) e algum embate. Isso pode ser visto em "O Cangaceiro" e "A Morte Comanda o Cangaço", por exemplo. Se uma comédia se passa no mundo moderno ou no reino de Luís X V, é sempre comédia. O mesmo para o western: se os elementos estão presentes, então ele se alia ao gênero.
O "feijoada" seria um subgênero?
É uma denominação. Dentro do western feijoada, existem os subgêneros "nordesterns", com presença do cangaceiro; rurais, como "O Homem do Corpo Fechado", "Da Terra Nasce o Ódio" e "Mandacaru Vermelho"; e os épicos regionalistas, que são os filmes cujo pano de fundo histórico é uma situação de guerra ("Um Certo Capitão Rodrigo", "Riacho do Sangue", "Paixão de Gaúcho") em que surgem forças do governo contra os personagens principais.
Glauber Rocha fez westerns, então?
"Deus e o Diabo na Terra do Sol" é um drama: o personagem Manuel não enfrenta ninguém para a narrativa andar. Ele mata o patrão e sai em busca de ajuda. A estrutura narrativa não o coloca em conflito, não o faz representar o Bem contra o Mal. Já "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" seria um faroeste rural, porque o personagem Antônio das Mortes chega num povoado dominado por um coronel e decide ajudar aquela cidade, contando com a ajuda de um professor. Então está bem configurado pra quem a gente deve torcer dentro da estrutura do filme. A questão de um ser western e o outro não ser está até explícita no título dos filmes: "Deus eo Diabo na Terra do Sol" dá idéia de dois elementos convivendo num mesmo espaço; "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" já demonstra que existem forças se digladiando.
Esses filmes menos conhecidos do gênero faziam sucesso?
Faziam, sim. Nos anos 50 "O Cangaceiro" foi um marco e a maior bilheteria daquela época. "Da Terra Nasce o Ódio" talvez seja o maior sucesso da década de 50, e isso independente do gênero. Não existe contabilidade precisa, existem matérias de jornal falando do sucesso dos filmes, com salas lotadas e filas imensas. E se pensarmos que os diretores insistiam em fazer mais e mais filmes do gênero dá a noção de que eles funcionavam com o público. Quando chega "A Sina do Aventureiro", do José Mojica Marins (e primeiro longa dele), esses filmes começam a migrar das grandes salas de exibição para a periferia. E aí eles param de estrear nos grandes circuitos , pegando apenas o circuito secundário. Eram cinemas freqüentados pelo povão mesmo, um outro tipo de público. Graças a essas pessoas, o gênero permaneceu. E na lista da Agência Nacional do Cinema (Ancine) dos anos 70, vários dos mais vistos são filmes do Tony Vieira.
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Rodrigo Pereira: Jornalista, escritor e pesquisador
Fã de faroestes desde criança, o paulista Rodrigo Pereira, 34, tem pesquisado há vários anos a manifestação do gênero dentro do cinema brasileiro. Pouca gente sabe, mas os chamados "western feijoada" fizeram grande sucesso nas telas dos anos 50 até a década de 80. Mergulhando a fundo no período, Rodrigo chegou a quase cem títulos lançados e prepara um livro a respeito sobre esse gênero pouco conhecido dos brasileiros.
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