Batalhando no cinema independente e na animação mineira há 20 anos, Sávio Leite teve um dos grandes momentos de sua carreira nesta semana, com a seleção de seu curta “Vênus: Filó, a Fadinha Lésbica” para o Festival de Berlim. Abaixo, ele fala sobre o desafio de adaptar Hilda Hilst no curta, o longa que vem desenvolvendo há dez anos e sobre fazer animação em Minas

De onde veio a ideia do curta?

Começou em 2009. Eu trabalhava na Fundação Municipal de Cultura na época. O Juarez Guimarães, meu colega, estava fazendo uma montagem de “A Possessa” e me chamou para fazer um vídeo de divulgação. Achei muito interessante, e ele me emprestou um monte de livros da Hilda Hilst que tinha usado na pesquisa. E me deparei com o “Bufólicas”, livro de contos eróticos dela. Tem três textos nele que amo de paixão. Aí, entrei em contato com o Mora Fuentes, que foi amigo da Hilda e morou com ela muito tempo. E falei desse conto, “Filó, a Fadinha Lésbica”. Depois, fui atrás de animadores com quem queria trabalhar. Ofereci para seis, e eles recusaram – muitos, em função do tema LGBT. Troquei cartas com o Mora Fuentes até 2013, quando consegui que o César Maurício fizesse o storyboard, inscrevi no Filme em Minas e fui premiado em 2014.

Qual foi a técnica de animação e como foi a produção?

Chamei o Denis Leroy, que já tinha trabalhado comigo no “Terra”, de 2008. Ele é um artista completo – animador, designer, grafiteiro –, e já tínhamos uma intimidade desde 2003, quando ele me ajudou a fundar o Mumia (Mostra Udigrudi Mundial de Animação). Juntos, tivemos a ideia de fazer o filme todo em gifs animados. O que mais tem na internet é gif de sexo. A gente fez uma pesquisa, levantou um monte e usou rotoscopia – que é uma técnica de redesenhar em cima de imagens gravadas – neles. É importante citar também o desenho sonoro do Sérgio Scliar e do Fabiano Fonseca, dois compositores talentosos de BH com quem trabalho há muito tempo. Fazem minhas trilhas quando tenho dinheiro e quando não tenho. E, no final, por ter entrado em Berlim, tive a possibilidade de fazer a mixagem no Grivo, outro talento daqui, com quem eu nunca tinha feito nada. Fui escutar na quarta, e está maravilhoso.

E qual é a premissa do curta?

É a história de uma fadinha que vive numa cidade e transa com todo mundo. Só que ela tem uma predileção por mulheres e se traveste de homem para pegar as moças. Até que um dia chega um cara muito forte, sequestra a fadinha, e a vila fica triste. Mas tem toda uma história por trás disso: tenho feito uma série de animações usando mitologia faz um tempo e, nesse curta, busquei a história da Vênus, deusa do amor. Contamos essa história toda em rotoscopia, sempre partindo de um gif preexistente.

Qual a importância da seleção em Berlim?

Ter uma primeira exibição lá vai dar uma visibilidade boa para o filme. E não só para ele, mas para a animação mineira e brasileira, que já está num caminho ascendente desde “Uma História de Amor e Fúria”, “O Menino e o Mundo” e uma série de curtas premiados. Isso faz com que nossos projetos futuros tenham mais facilidade de serem feitos. Estou com 45 anos. Há dez penso em fazer um longa. Talvez essa seleção num festival de grande porte, com o mundo de olho, me ajude a realizá-lo.

Esse longa é sobre o quê?

Há dez anos desenvolvo uma animação em cima de “O Amanuense Belmiro”, do Cyro dos Anjos. A família dele já sabe, estamos negociando os direitos. Já tenho o argumento e o design dos personagens. É um projeto do meu coração e é completamente antagônico ao “Vênus”. E é um livro que fala muito para nós, belo-horizontinos. O mesmo clima que o Cyro absorvia ainda permanece hoje: uma nostalgia do tempo não vivido, um ar interiorano e personagens que parecem saídos de um poema de Carlos Drummond.

E qual foi o maior desafio e o que mais te agradou no “Filó”?

O maior desafio foi ser sincero com a obra da Hilda. Fazer algo que, se ela estivesse viva, a agradasse. Que não fosse menor que a poesia dela e respeitasse a arte literária nessa tradução intersemiótica. E meu maior prazer foi a Helena Ignez ter aceitado o convite para narrar o curta. Eu sabia que tinha que ser uma mulher, e sou fã da Helena desde “O Padre e a Moça”, “A Mulher de Todos” e “O Bandido da Luz Vermelha”.

É possível hoje realizar uma animação inteiramente em Minas?

A gente já tem equipe, tem know-how, a primeira escola superior de animação no Brasil, muitos artistas gráficos, desenhistas reconhecidos... O que ainda falta é uma política de incentivo com continuidade. Meu curta foi feito com recursos do Filme em Minas, que não acontece há dois anos. Esses novos editais do Prodam, da Codemig, querem apoiar, mas não contemplam curtas, instalações, publicações e distribuição. E como animador, o que eles estão oferecendo para longa de animação não dá, não bate. Querem exigir muita coisa, sem dar em troca. A indústria não se resume só a longa e série de animação. E curta experimental, quem vai apoiar? O Prodam e a Codemig acrescentam, mas não podem existir em detrimento do Filme em Minas. Não podemos trocar um pássaro na mão por dois voando.

Por que você decidiu ser animador?

Meu namoro com o cinema começou em 1993, quando fui aluno da Patrícia Moran. Fiz comunicação, ia ser relações públicas, mas fiz uma aula com ela e debandei completamente para a animação. Eu já gostava da subversão do Glauber Rocha e do Godard, mas, quando vi os curtas de um cara chamado Tex Avery, tive o insight de que a animação podia ser ainda mais subversiva que os dois. Fui fazer o making of de um curta da (animadora) Tânia Anaya, ela me convidou para um festival de inverno, no qual conheci o Clecius Rodrigues, com quem fiz meu primeiro curta, em 2001. Não sou um desenhista maravilhoso, mas tenho ideias e consigo fazer elas se tornarem realidade.

E você já pensou em se arriscar lá fora?

Quando era mais jovem, sim – como todo brasileiro, acho. Mas agora não saio mais. Cuido da minha mãe, que tem 88 anos. E a cada dia que fico, acho que meu lugar é aqui mesmo. Lá fora pode até ter mais oportunidades, mas não é lá que a gente vai ser feliz. Temos uma história para construir, mudar a mentalidade das pessoas, nem que seja um pouco. Ainda falta muita coisa para ser feita no Brasil – inclusive fazer as pessoas reconhecerem o cinema de animação nacional. Falta sensibilidade, e a função do artista é essa: quero ajudar a mudar a mentalidade, nem que seja só dos meus alunos.

A indicação de “O Menino e o Mundo” ao Oscar fez diferença para a animação brasileira?

Fez, é incrível. Sensibilizou pessoas que, de outro modo, não se sensibilizariam. Precisamos ser selecionados, premiados para termos visibilidade. Mas que bom que somos. Todo esse reconhecimento está contribuindo para um olhar diferenciado para a animação.

O que você espera da troca de gestão na Ancine em maio?

Não vejo mudança. Talvez um retrocesso, como o que estamos vendo nas políticas de avanço que o Brasil teve em todos os setores. Acho que a política de audiovisual que vem sendo construída foi exitosa em todos os aspectos. A Ancine fez um trabalho maravilhoso – inclusive ajudando os realizadores a irem para festivais no exterior. Esses 12 filmes brasileiros em Berlim são o resultado de uma política de incentivo que está consolidada e não pode acabar. Se deixarem o que está hoje, já farão um grande serviço.

E quando “Filó” poderá ser visto no Brasil?

É uma pergunta que venho me fazendo há dias. Mas voltando de Berlim, minha prioridade vai ser fazer um lançamento na Casa do sol, onde a Hilda (Hilst) morava.