Perfil

Uma trajetória de solidez

Laureada como melhor atriz pelo Prêmio Sinparc, Rejane Faria, do grupo Quatroloscinco, estreia curta em Cannes

Por Joyce Athiê
Publicado em 14 de maio de 2017 | 03:00
 
 
 
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Aparentemente, era paradoxal e fora do seu tempo. Mas, falando de arte, era e foi possível. O teatro apareceu para Rejane Faria aos 32 anos, dentro das burocracias do trabalho que exercia nos Correios. Foi ali que encontrou um grupo de teatro e ela, que na época era vocalista de uma banda de pop rock, foi convidada para integrar o elenco.

Já muito interessada pela arte, Rejane foi estudar teatro em um curso de extensão no UNI-BH, onde conheceu Cida Falabella, Juarez Dias Guimarães, Luiz Arthur e Ione de Medeiros. “Eram pessoas que estavam fazendo teatro contemporâneo na cidade”, lembra.

Dali, ingressou de vez. Foi fazer o curso de graduação da UFMG, em 2006, e acabou por conhecer, em sala de aula, os amigos com os quais fundaria o grupo o Quatroloscinco – Teatro do Comum.

“O grupo se formou quando fizemos uma matéria de teatro latino-americano com a professora, diretora e dramaturga Sara Rojo, e nos encantamos. Lemos vários livros, mas quando tomamos conhecimento de ‘Só os Babacas Morrem de Amor’, do argentino César Brie, resolvemos montar uma cena curta para o Galpão Cine Horto. Acabamos sendo premiados, viajamos e resolvemos montar um espetáculo com os R$ 900 que ganhamos. É um espetáculo que marca nossa história”, lembra Rejane, que acabou por levar com esse trabalho o prêmio de melhor atriz coadjuvante pelo Sated, em 2010.

Quando entrou para a graduação em teatro, Rejane estava com 43, já carregando outras experiências que seus colegas de sala e de grupo, por volta dos 20 anos, nem poderiam imaginar. “Havia uma diferença etária, mas, praticamente, não se falou sobre isso. Era natural e orgânico eu estar ali no meio. Isso nunca criou barreira alguma, mas criou algo interessante que foi a percepção de uma força que existia para eu estar ali. Uma mulher, com uma trajetória de vida, administrando uma família, com dois filhos adolescentes na época, entregue a um curso que tinha aula de manhã, tarde ou noite. Eu ainda precisava trabalhar para sobreviver e estava ali dando conta de fazer todas essas coisas”, conta a atriz.

“Eles sempre tiveram um olhar para mim a partir desse desejo de fazer. Me energiza muito estar ao lado deles, que são mais jovens. A vida deles passa por mim e a minha vai passando por eles”, completa.

O grupo, que teve em sua primeira versão também a participação de Polyana Horta e Sérgio Andrade, segue, em 2017, com Rejane, Ítalo Laureano, Marcos Coletta, Assis Benevenuto e Maria Mourão, artistas que compartilham das alegrias e dos esforços de uma trajetória prestes a completar dez anos. “Essa coisa da resistência que nos acompanha sempre nos parece uma condição. Trabalhamos praticamente de forma independente, contando com parceiros, montando espetáculos nos espaços de grupos amigos, convivendo com outros modos de teatro. Minha relação de afeto com o grupo é inseparável da minha relação familiar. Temos um pacto de vivência que nos sustenta, nos alimenta e nos faz caminhar com todas as dificuldades, declara Rejane.

Na dramaturgia do Quatroloscinco, preza-se pela autoria e por um trabalho feito a partir das angústias, aflições e histórias pessoais do elenco. “O teatro me atrai pelo discurso. É o lugar que nos fazemos fortes pela palavra. Nas nossas criações, estamos sempre muito vivos e acompanhando o que está acontecendo, o que nos angustia e o que vivemos. Estamos atentos a questões sociais, políticas e existenciais, de todos os gêneros e ordens. E no teatro conseguimos colocar nosso entendimento do que pensamos ou do que queremos refletir”, diz.

Foi com “Ignorância”, penúltimo espetáculo do grupo, abordando vícios sociais como o julgamento, a intolerância e a violência, que Rejane levou para casa, neste ano, o Prêmio Sinparc na categoria de melhor atriz. “Não fazemos nada pensando em prêmio, mas quando acontece, é um reconhecimento”, afirma.

Experiências. Trajetória consolidada no teatro, o currículo de Rejane no cinema também conta com uma série de relevantes experiências. Depois de pequenas participações, ela fez sua verdadeira estreia com o curta “Quinze”, da produtora Filmes de Plástico. Ali, fez outras produções como “Rapsódia para um Homem Negro”, levando prêmio de melhor atriz do Festival Guarnicê de Cinema, do Maranhão. Atuou também em “No Coração do Mundo” e agora estreia, nos dias 23 e 27 de maio, o curta “Nada”, na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes, na França.

Rejane também já trabalhou nas produções de Ricardo Alves Jr, Marília Rocha e Daniel Jr. Filmou “Mostra Sua Cara”, da produtora Aldeia, para séries educativas da TV pública, sobre as manifestações de 2013. E ainda filma em agosto uma série com Cris Azzy.

“O que anda despertando o interesse é o meu perfil de uma mulher de 56 anos, negra, que vem se solidificando no audiovisual. Isso é também o resultado de tudo o que foi feito no Quatroloscinco e o que foi feito fora do grupo. Mas, além disso, também tenho uma forma de trabalho que interessa. Eu me aproprio das produções, não quero chegar em um lugar para fazer um personagem, mas criar junto possibilidades para aquilo que está me sendo proposto. Acredito muito nisso. Nada está dado e acabado, então vamos construindo juntos”, pontua a atriz.

Sobre sua arte e a negritude, Rejane fala com a presença de seu corpo negro em cena. “Incrivelmente, isso sempre me trouxe lugar de destaque. De uns tempos pra cá, quando essas questões ficaram mais afloradas, me assusto e me encanto. Sou filha de mãe branca e pai negro. Então, dentro de casa, isso sempre foi muito bem resolvido. Mas hoje tenho mais vontade de me aproximar dessas questões. Antes, eu não tinha condições e não pretendo entrar nesse lugar sem conhecimento e sem tempo para me dedicar a isso. Mas acho importante discutir porque tem muita gente sofrendo. Não são situações fáceis como as que me apareceram até então”, observa.

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