O ano começou com a estreia de “Madame Satã”, com direção de João das Neves e Rodrigo Jerônimo. A partir da história de João Francisco dos Santos, homem, negro, pobre e gay que se travestia pelas boêmias ruas cariocas, o Grupo dos Dez discutiu o racismo e a homofobia. Em certo momento da peça, pergunta-se: “há travestis morrendo lá fora. E vocês, não vão fazer nada?”
Mais recentemente, no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto deste ano, instaurou-se um clima de comoção entre atores e plateia. Choros, abraços, afetações e incômodos. Cerca de 40 negros, entre homens e mulheres, haviam finalizado a cena com grito direcionado ao público. Essa foi uma das apresentações de “Rolezinho”, com direção de Alexandre de Sena.
Também neste ano, durante uma performance na UFMG, as atrizes de “Calor na Bacurinha” realizaram uma performance em que colocavam em xeque exatamente aquilo que as violentou. Nuas, afrontavam a cultura machista, a mesma que fundou os gritos de estudantes da universidade que respondiam com intolerância à apresentação fortemente marcada por um viés político.
Não se trata de dizer que esses acontecimentos representam a totalidade da cena belo-horizontina, mas chamam a atenção para algumas urgências sociais que têm pautado as produções cênicas da cidade. Em 2015, novos trabalhos chegaram aos palcos levantando bandeiras e discutindo questões do negro, de gênero e sexualidade.
“O que se observa agora é uma intensificação. Talvez, pela onda reacionária dos últimos anos e, a partir de junho de 2013, com todas essas questões sociais que foram levantadas, essas temáticas ficaram mais evidentes. E, em Belo Horizonte, isso se demonstra na cena, de forma mais acentuada que em outros cenários do país”, aponta Luciana Romagnolli, crítica e pesquisadora.
Não que esses temas façam sua estreia nas artes cênicas. Longe disso. Coletivos e artistas já haviam construído a trilha para que tudo isso eclodisse a ponto de ganhar olhares mais atentos. O que há, então, de peculiar no modo como essas temáticas identitárias têm sido tratadas? “Antes, a política era feita pelo discurso, pela racionalidade e, agora, o que vemos é uma questão estética maior, com experimento de linguagem, tomar essas criações”, afirma Nina Caetano, artista, pesquisadora e professora da UFOP.
Influências. Nesse sentido, a performance abre outras possibilidades na dimensão política do teatro. “Ela não se dá unicamente pelo texto. Ela parte do corpo que fala. E aí entra a questão negra, da mulher, das trans, porque é esse corpo que está na rua, sendo violentado e vai levar a vivência que armazena para o dentro de um trabalho artístico ”, afirma Luciana.
É como se a ideia de representação – que rege o teatro – não desse conta de lidar com algumas complexidades e fosse preciso outra forma para criar novos sentidos. “Em termos racionais, as pessoas jamais vão admitir os preconceitos que carregam, mas, atravessados por imagens e sensações, reagem de outra forma. A potência política da percepção desarranja lugares que o discurso não consegue”, diz Nina.
É isso que, talvez, tenha gerado a comoção após a citada apresentação de “Rolezinho”. “A presença daqueles corpos faz a gente perceber algo que é naturalizado, que a gente esquece a quantidade de negros que fazem parte da sociedade. Quando se investe na energia da presença daqueles corpos, aquilo afeta em num lugar que não é da racionalidade, é dos afetos”, reflete Luciana.
Fazer política. Sobre o teatro negro, por exemplo, Marcos Alexandre, ator, pesquisador e professor da UFMG, diz que as novas formas de fazer política em cena vão dar lugar a outras questões. “A religiosidade, os rituais afrobrasileiros, a contação de histórias não serão os únicos elementos a serem lembrados”. Ele exemplifica com “Memórias de Bitita, do Grupo Circo Teatro Olho da Rua. A peça retoma a história de Carolina Maria de Jesus, escritora negra, mas a ressignifica a partir de outras vivências que dizem respeito à contemporaneidade. “Não é um abandono da tradição porque ela está presente, mas de outra forma”.
No que tange a transexualidade, o coreógrafo multiartista, Guilherme Morais – que estreou recentemente o espetáculo “Mula” (ver ao lado) – cita alguns grupos que abordam a temática como a Toda Deseo, o Beijo no Preconceito, além do espetáculo “Madame Satã”. Mas ele pondera que o assunto não chega às grandes produções; Essa análise nos leva a pensar que, dentro desse teatro em que as urgências têm sido pautadas, a autoralidade é uma das chaves propulsoras para a expressão daquilo que toca a identidade dos próprios artistas.
“A dramaturgia autoral, os trabalhos de grupo e o teatro experimental trazem temas que estão mais próximos da experiência desses artistas e do que eles vivem. As questões pessoais saltam para a cena”, afirma Igor Leal, ator e pesquisador. Para Marcos Alexandre, este é o ponto que vai ressaltar os lugares de enunciação. “Essa questão, para as pessoas que foram silenciadas, é muito importante. Quando um negro se coloca na cena, ele fala dele mesmo”, pontua.
FOTO: Deia Vieira e Marcos Vieira/divulgação |
![]() |
“Calor na Bacurinha” (acima), espetáculo dirigido por Marina Viana, e “Rosa Choque” (abaixo), com direção de Cida Falabella.
FOTO: FLAVIO CHARCHAR/divulgação |
![]() |