O que pode haver em comum entre Itamar Assumpção (1949-2003), Luiz Tatit e Milton Nascimento? No caso, a voz de Zélia Duncan, 53. A intérprete, que dedicou álbuns aos dois primeiros entre 2012 e 2014 (respectivamente, “Tudo Esclarecido” e “Totatiando”), acaba de lançar “Invento +”, com foco na obra de Bituca. Mas dessa vez ela não está sozinha.

Zélia é acompanhada pelo violoncelo de Jaques Morelenbaum, 63. Além da concepção e dos arranjos, esse é um disco de ambos, na acepção da palavra, também porque não há mais ninguém além da dupla a interpretar as canções. “Fui convidada pelo André Midani para criar algo para um projeto chamado ‘Inusitado’. Pensei então em cantar Milton sem instrumento de harmonia”, revela. A característica que marca e, em grande parte, diferencia a produção do homenageado, não por acaso, teve que ser transformada.

“Achei e acho muito desafiador. Eu comecei a cantar aos 16 anos, em 1981, e, nesse primeiro show, já havia ‘Fazenda’ (música de Nelson Angelo), do repertório de Milton. Ele está na fundação da artista que sou. Vivo de rastrear invenções”, define-se Zélia. Mesmo com uma década a mais de idade, Morelenbaum também se encantou por Milton na juventude, o que reforça a atemporalidade das canções.

“Vivi com enorme intensidade as participações de Milton nos Festivais da Canção dos anos 1960, com (as músicas) ‘Travessia’ e ‘Morro Velho’. Assim como assisti a inúmeros shows dele com (o grupo) Som Imaginário no antigo (teatro) Tereza Rachel, Teatro Fonte da Saudade e Teatro Opinião”, recorda. “Tinha todos os discos dele, ouvi com os amigos durante toda a minha adolescência e aprendi essas canções no violão ou no piano”, diz.

Repertório. Dada a idolatria da dupla pelo homenageado, a seleção das 14 músicas que integram o repertório foi, a um só tempo, difícil e fácil. “Tudo que a gente ama como ouvinte interfere. Milton virou um gênero musical, é um dos pilares da música brasileira, é muito profunda a influência de seu canto, timbre e universo musical”, derrete-se Zélia. “Todas essas canções são muito fortes para mim e para o Jaques, nosso amor por Milton foi o ponto crucial dessas escolhas”, completa.

Morelenbaum revela, inclusive, que por muito pouco o projeto não se transformou em uma franquia: “Tínhamos um universo tão vasto a nossa frente. Pode ter certeza que, de cara, pensamos logo nos volumes 2, 3 e assim por diante, tal era a vontade que dava de tocar todas as canções das quais lembrávamos”. Uma canção, no entanto, deu pausa à reciprocidade entre os dois músicos. “Já não me lembro exatamente quem sugeriu qual em grande parte do repertório. Me lembro nitidamente, entretanto, que ‘Travessia’ foi uma escolha minha, talvez a única opção que a Zélia, a princípio, questionou”, entrega. “Mas depois ela abraçou e arrasou”, diz.

Além de “Travessia”, o CD passeia por canções gravadas por Milton desde sua estreia no mercado fonográfico, em 1967, até a icônica “Encontros e Despedidas”, lançada em 1985. O que significa dizer que não necessariamente os intérpretes se pautaram pela obra autoral do autor de “Ponta de Areia”, “O Que Foi Feito Devera”, “San Vicente” e “Caxangá”, parcerias com Fernando Brant aqui presentes, como também estenderam o leque para “O Que Será” (Chico Buarque), “Calix Bento” (Tavinho Moura), “Volver a Los 17” (Violeta Parra) e “Beijo Partido” (Toninho Horta), ou seja, versos que o canto de Milton ajudou a eternizar.

“Milton tem a voz do Brasil. Com sua linguagem musical e poética, portas se abriram e mostraram horizontes para a MPB”, enaltece Zélia. “Sua obra e tudo que a cerca revela para mim um Brasil interior, das montanhas de Minas. Mas também respira os ares do rock inglês e americano, ao mesmo tempo em que flerta com a sofisticação da bossa nova e do jazz”, delineia Morelenbaum.

Com duas versões – uma delas limitada a 300 exemplares, traz embalagem artesanal e colagens de Nino Cais –, o álbum optou por um título sintético para dar conta desse espectro amplo.

Retirada da música “Cais”, parceria de Milton com Ronaldo Bastos que fecha o disco, a frase “invento mais” permanece no coração de Zélia, que aproveita para responder à primeira questão da matéria. “As ideias foram me acontecendo, por motivos diferentes. O que há em comum é minha paixão antiga por cada um deles”, conclui.