Erudito

Manuscrito de Lycia de Biase Bidart tem agora versão digital online

Uma das primeiras mulheres a reger uma orquestra no Brasil, compositora ganha partitura digitalizada da ópera inédita ‘A Noiva do Mar’

Por Alex Ferreira | @alexnycman
Publicado em 27 de dezembro de 2022 | 05:30
 
 
 
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“Vendo no palco aquela figurinha gentil, frágil, como uma pequenina flor desambientada, eu fiquei a pensar no estranho poder do talento. Como pode aquela deslumbrada almazinha de moça multiplicar-se, criando vozes diferentes para a grossa multidão de instrumentos empenhados em dar ao som, ora rumoroso, ora em surdina, a verdade de um grande sentimento de beleza?”. 

Foi assim que o escritor Saul de Navarro (1890-1945) descreveu a sensação de poder assistir ao vivo a uma apresentação da compositora, pianista e maestrina capixaba Lycia de Biase Bidart (1910 -1991). 

Considerada uma das mais importantes figuras da música erudita brasileira no início do século 20, ela volta a ganhar destaque com uma versão digital do manuscrito para sua ópera inédita “A Noiva do Mar”, que está agora disponível gratuitamente no site operaanoivadomar.com.br.

O projeto é resultado do trabalho de músicos da Universidade de São Paulo (USP), que, com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural, transcreveram, editaram e diagramaram a partitura para a escrita musical moderna. 

“Esperamos que a publicação funcione como um registro documental e um mecanismo facilitador de acesso à obra da compositora, permitindo que todos os interessados por música possam executá-la”, frisa Guilherme Baldovino, pianista, professor de música na Universidade de Brasília (UnB) e um dos responsáveis pelo projeto. 

Segundo Baldovino, o trabalho contou com a reprodução e o exame dos manuscritos originais, além da redução da composição original para piano. “Nosso grupo realizou a digitalização dos manuscritos, a sua transcrição para o formato digital – através de programas de editoração de partituras –, diagramação e revisão da obra inteira”, conta. 

O resultado evidencia a grandeza de Lycia para a música clássica nacional. 

“Ela foi uma compositora importantíssima e muito prolífica, com mais de 400 obras escritas para vários estilos, gêneros musicais e diferentes instrumentações. Ela compôs desde óperas, passando pela música de câmara, até canções e repertório solo. É um material valiosíssimo para a referência de performers, estudantes e para quem faz música no país”, opina. 

A soprano e pesquisadora Janaína Avanzo, que também fez parte do processo de modernização do manuscrito, diz que Lycia teve papel fundamental no desenvolvimento de renovação artística da música clássica no Brasil. 

“As obras dela têm as mesmas influências que outros compositores nacionais vivenciaram na época, aquela coisa do movimento antropofágico, da Semana de 22, que eram voltados para trazer temas do folclore brasileiro e da nossa cultura para as artes. Por causa da grande visibilidade que tinha, sua produção acabou inspirando algumas mudanças na cena musical da época”, explica. 

Janaina aponta ainda que Lycia foi uma pioneira no que diz respeito à participação feminina no meio erudito. 

“Sabe-se que até o fim do século 19 não se permitia que mulheres estudassem música erudita em sua profundidade. Muitas não podiam nem sequer frequentar conservatórios, e toda essa atividade criativa da música não era acessível para elas de modo geral. No entanto, quando elas conseguiam se inserir, eram taxadas como amadoras. Somente no começo do século 20 é que as mulheres começaram a ganhar um pouco de espaço nesse ambiente”, afirma a estudiosa. 

Avanzo comenta que Lycia conseguiu sobressair-se porque além de seu grande talento, ela tinha também suporte tanto da família quanto de seu mentor, o maestro Giovanni Giannetti (1869-1934). 

“Esse apoio permitiu que ela não só adentrasse as salas de concerto, mas que fosse ouvida e, por consequência, respeitada e aclamada pelo público. Sem dúvida não era uma coisa comum daquele tempo. Apesar de as mulheres terem começado a conseguir espaço como criadoras e compositoras, Lycia foi um exemplo claro de que aquela realidade era possível”, enfatiza a soprano. 

Talento esquecido 

Mesmo sendo uma das maestrinas mais renomadas de sua geração, por que o trabalho de Lycia segue com tão pouca visibilidade tanto no meio acadêmico quanto no popular? “Acredito que isso tem a ver em parte com o fato da academia musical no Brasil ainda se interessar somente por estudar compositores do cânone europeu”, delibera Guilherme Baldovino. 

Ele acrescenta que essa fixação, inclusive, acaba retirando verbas que poderiam ser destinadas para o estudo de compositores brasileiros pouco conhecidos. “Isso claramente desestimula a descoberta de outros compositores que poderiam enriquecer ainda mais nossa música”, avalia. 

Acima de tudo, diz ele, isso exclui ainda o trabalho de outras mulheres. “Ainda existe a tendência de que quando, se estudam compositores daqui, há uma concentração exclusiva em figuras masculinas, que embora tenham muita importância, não são os únicos que atuaram no cenário nacional. Nós temos uma série de compositoras que são pouco pesquisadas por causa desse machismo estrutural dentro do meio acadêmico”, analisa Guilherme. 

Biografia 

Lycia de Biase Bidart nasceu em 18 de fevereiro de 1910, na cidade de Muniz Freire, no Espírito Santo. 

Começou a estudar piano aos 7 anos e aos 18 mudou-se de vez para o Rio de Janeiro. Em 1927, teve a sua primeira estreia musical com a composição “Ave Maria”, que foi apresentada na igreja Nossa Senhora da Lapa, no Rio. Na mesma época teve aulas de composição e regência com o maestro Giovanni Giannetti, que participou ativamente do início da vida musical de Lycia, orientando-a em suas composições e regendo várias de suas estreias. 

Entre 1930 e 1934, Lycia teve cinco concertos no Theatro Municipal do Rio. Seu pai, em alguns desses concertos, alugou o Theatro e a orquestra para que ela pudesse realizar as suas estreias. 

Em 1932, estreou a peça “Chanaan”, que, regida por Giannetti, recebeu elogios e firmou seu nome como uma das grandes compositoras de sua geração. 

Lycia  passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, onde construiu sua família e compôs músicas até sua morte, em 1991.

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