A dramaturgia nacional está de luto. Morreu nesta terça-feira (15), aos 90 anos, a atriz carioca Léa Garcia. A artista, aliás, estava no Festival de Gramado, que está acontecendo desde sexta (11) na cidade gaúcha, onde receberia nesta noite o troféu Oscarito, uma homenagem pelo conjunto da obra. A atriz Laura Cardoso também vai receber o mesmo troféu. Léa chegou a ser encaminhada ao Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado (RS), mas chegou sem vida. O hospital confirmou que a causa da morte foi um infarto agudo do miocárdio.
Léa, que nasceu no Rio de Janeiro em 11 de março de 1933, ainda estava na ativa e chegou a ser convidada para participar do remake de Renascer, na Globo, que vai estrear em janeiro de 2024. A atriz – que estava afastada das novelas desde A História de Ester (Record TV), foi convidada para viver Inácia, personagem defendida por Chica Xavier na primeira versão. É a empregada da casa de José Inocêncio, o protagonista, que deverá ser interpretado pelo ator Marcos Palmeira.
Léa Garcia somava mais de seis décadas dedicadas ao ofício de interpretar, seja no teatro, no cinema ou na televisão. Ela foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes em 1957 por sua atuação no filme Orfeu Negro, do diretor Marcel Camus, e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. O longa foi inspirado na peça de teatro "Orfeu da Conceição", assinada por Vinicius de Moraes, e ambienta o mito grego de Orfeu e Eurídice em uma favela carioca. Eurídice, interpretada por Marpessa Dawn, saí do sertão nordestino para morar com a prima Serafina, encarnada por Léa, no Rio de Janeiro.
Ffilha de uma modista e de um bombeiro, aos 11 anos foi morar com a avó, que trabalhava como doméstica em Copacabana. Ela foi casada com o dramaturgo e ativista Abdias Nascimento, com quem teve dois filhos, Henrique Christovão Garcia do Nascimento e Abdias do Nascimento Filho. Foi ele que a convenceu a subir no palco pela primeira vez, na peça Rapsódia Negra (1952), do próprio Abdias, encenada pelo Teatro Experimental do Negro. A partir de então, a paixão pelas artes cênicas se impôs. Mais tarde teve seu terceiro filho, Marcelo Garcia de Aguiar conhecido como Marcelão Garcia (1965), com Armando Aguiar.
Depois de "Orfeu Negro", ganhou as telonas em "Ganga Zumba" (1963), primeiro filme dirigido por Cacá Diegues nos moldes do cinema novo. O longa conta a história do líder do Quilombo dos Palmares, com trilha de Moacir Santos e participação de Cartola.
Mas não foi só no cinema e no teatro que Garcia deixou sua marca. A atriz começou a trabalhar na Globo na década de 1970, quando integrou o elenco de "Assim na Terra Como no Céu", novela de Dias Gomes, como Dalva, doméstica de Renatão (Jardel Filho).
A partir daí, sua carreira na televisão decolou. Participou de outras novelas como "O Homem que Deve Morrer"(1971) e "Fogo Sobre Terra" (1974), em que interpreta uma empregada que mata o patrão. Gravada em pela ditadura militar, a cena precisou ser regravada. No início daquela década, participou do primeiro programa transmitido inteiramente a cores no país, "Meu Primeiro Baile, Caso Especial".
Na Manchete, estava no elenco de "Dona Beija" (1986), "Tocaia grande" (1995), de Duca Rachid baseado na obra de Jorge Amado e "Xica da Silva" (1996), de Walcyr Carrasco.
De volta à Globo, nas décadas de 1990 e 2000 compôs o elenco das novelas "Anjo Mau" (1997), em que contracenou com Taís Araújo, "O Clone" (2001), de Glória Perez e "Êta mundo bom!" (2016), em que trabalhou novamente com Walcyr Carrasco.
Um dos papéis mais marcantes de Léa Garcia foi a vilã Rosa, da primeira versão de Escrava Isaura (1976), novela que a tornou conhecida do público, e venceu a barreira dos personagens tradicionalmente destinados a atrizes negras. Na época, a atriz contou sofrer agressões na rua porque o público não sabia separar a personagem da artista. "Eu me lembro de uma cena em que, quando a Rosa acabou de fazer todas as perversidades com a Isaura, eu tive uma crise se choro, me pegou muito forte. Chorei muito, não com pena, mas porque me tocou", disse Léa sobre o papel ao site "Memória Globo".
Em 2020, a atriz participou da Mostra de Cinema de Tiradentes para lançar o longa “Um Dia com Jerusa”, o qual estrela, sob a batuta de Viviane Ferreira, segunda mulher negra a dirigir um longa no Brasil. Este foi o último trabalho da atriz no cinema.
À época, a edição da mostra teve o lema “A Imaginação como Potência”. Informalmente, muitos realizadores trataram o festival como “A Primavera do Audiovisual Negro”, o que agradava Léa.
Para se ter ideia, entre os 81 curtas selecionados em Tiradentes em 2020, 29 têm pessoas autodeclaradas negras ou pardas na direção ou codireção. Em 2019, eram 18. Além disso, na mostra Foco, a competitiva de curtas, 70% dos realizadores eram negros. “Nós partimos da condição de sujeitos e, de uns tempos para cá, estamos conquistando a posição de realizadores”, orgulhou-se Léa Garcia em entrevista a O TEMPO. Desde 1949, quando ingressou na companhia Teatro Experimental Negro, iniciativa idealizada por Abdias Nascimento, a atriz já se propunha a pensar como as questões raciais atravessavam as artes cênicas. (Com agências)