Luto na dança

Morre Marlene Silva, pioneira na divulgação da dança afro

A dançarina e coreógrafa, que influenciou várias gerações, morava atualmente no Rio de Janeiro

Por Patrícia Cassese
Publicado em 13 de abril de 2020 | 18:59
 
 
 
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O universo da dança está de luto. Faleceu a coreógrafa e dançarina Marlene Silva, um ícone desse universo em Minas Gerais e, no espectro mais amplo, em todo o Brasil. As causas da morte ainda não foram divulgadas: o corpo da artista de 83 anos (faria 84 em junho) foi encontrado pela neta no banheiro da casa em que residia, no Rio de Janeiro. 
 
Marlene Silva nasceu em Belo Horizonte, mais precisamente, no bairro Concórdia. Ainda na infância, se mudou com a mãe para o Rio de Janeiro, onde começou a fazer aulas de balé clássico. Em entrevista ao Magazine, em junho de 2018, ela relembrou o período. “Eu era a única aluna negra da classe. Durante seis meses, a professora me ignorou completamente. Minha mãe foi perguntar se tinha algum problema comigo, e a professora disse que eu tinha o bumbum muito empinado e ele não caberia dentro do tule. Minha mãe me tirou do balé na hora”, disse, à época, ao jornalista Gustavo Rocha.
 
Na sequência, aprendeu a tocar acordeom, tendo se habilitado também a atuar como professora de teoria musical. Aos 21 anos, assistiu pela primeira vez a uma apresentação de dança afro-brasileira, no caso, com o balé folclórico de Mercedes Baptista. “Eu sempre fui muito boa de história e quis estudar nosso folclore; quem dera todos tivessem a oportunidade de estudar o folclore brasileiro. No Rio de Janeiro, tinha orquestras em todos os teatros públicos e também as companhias de dança. Na primeira vez que eu vi o balé de Mercedes Baptista, pensei comigo: é isso que quero", comentou, na já citada matéria.
 
Um importante ponto de virada na vida de Marlena Silva se deu com o convite para participar da preparação do icônico filme “Xica da Silva” (1976), de Cacá Diegues. Marlene foi convidada a trabalhar os ritmos e a coreografia presentes em uma das cenas do filme, protagonizado por Zezé Motta, Walmor Chagas e José Wilker. Por conta do trabalho, se deslocou para Diamantina, onde conheceu Dulce Beltrão, que mantinha uma escola de dança na capital mineira. Pouco mais tarde, Marlene resolveu abrir a sua academia, dedicada à dança afro na cidade. Situada no bairro Santo Antônio, o espaço foi o celeiro de vários espetáculos, como “Raízes da Nossa Terra". Daí, foram vários momentos importantes de uma carreira que obteve diversosreconhecimentos. Em 2018, por exemplo, ela foi a homenageada da mostra Benjamin de Oliveira. Também recebeu a alcunha de cidadã honorária de Belo Horizonte.
 
Colegas de profissão e amigos de Marlene Silva falaram sobre a trajetória pioneira da artista. "É uma perda imensurável para a dança, e não só a de matriz africana", comentou o coreógrafo e dançarino Evandro Passos, um de seus discípulos. A dançarina Júnia Bertolino, da Companhia Baobá, emendou: "O céu ganhou mais uma estrela. Vai, grande mestra, vai com Deus. E obrigada por todo o ensinamento".  
 
Evandro Passos, aliás, está se debruçando sobre a vida da mestra para o seu doutorado. "Já falei sobre a trajetória dela no meu mestrado, agora, dou sequência. Marlene entrou para a história da dança no Brasil tendo influenciado vários dançarinos e coreógrafos", diz ele, que conversou com ela na semana passada, por telefone. "Ela estava com todo o gás, com vários projetos. Mandei um vídeo que achei dela, justamente por conta dos estudos, e ela disse: 'Só você mesmo, Evandro'. Foi minha primeira professora de dança, assim como a de vários coreógrafos, alguns inclusive que foram mostrar sua arte em outros países. Foi uma desbravadora. Sofreu discriminação, mas lutou. E se hoje o Carnaval da cidade é tipicamente de tambores e percussão, é porque tem muito a mão dela aí".
 
Em sua dissertação, Evandro dedicou um capítulo a Marlene Silva, no qual, em um trecho, Marlena fala sobre a resistência e preconceito na cidade. "Fui eu quem iniciou essa modalidade de Dança Afro para palco em Belo Horizonte e consegui ter um nome por aqui. Mas não foi fácil, tive que levar a Dança Afro para as ruas da cidade também. Apresentei na praça da rodoviária, praça da Liberdade e outras da cidade, antes de ganhar as academias. Chamavam-nos de macumbeiros e outros apelidos pejorativos, jogavam pedra e tudo mais", relatou.
 
"Mesmo tendo de lidar com a intolerância, a falta de respeito e a discriminação racial na cidade, Marlene apresentou-se em praças públicas, cujas hostilidades eram recorrentes. Apesar desses percalços, a Dança Afro de Marlene foi um marco para proliferação de companhias, grupos e formação daqueles que seriam os agentes culturais multiplicadores", escreveu Evandro, em sua tese.
 
O percussionista Marcinho Martins, que acompanhou Marlene por mais de 30 anos, foi outro a se emocionar com a passagem da mestra. "Olha, é muito difícil descrever Marlene Silva num momento desses. Eu não diria quem "foi" Marlene (usando o passado), porque Marlene continua aqui. E sempre será eternizada no meu trabalho. Foi mãe, amiga, companheira. E eu tive o prazer de ter trabalhado com ela ao longo de 35 anos. Iniciei com ela aos 12 anos de idade. Vivemos juntos muitas vitórias - e muita barra-pesada também. Mas ao final tudo era festa e felicidade, pois preocupávamos mais com o trabalho que com o lado financeiro. Então, para mim, ela não nos deixou. É uma estrela que vai ficar no céu, trabalhando junto com a gente".
 
Martins diz que se lembra da amiga sempre dando risadas. "Nunca tive sequer uma discussão que abalasse nosso trabalho nessas mais de três décadas. Aproveito essa oportunidade para deixar uma frase que eterniza o trabalho dela, que é o título do espetáculo dela 'Força, magia e fé'. Um abraço, nega. Que a tua luz continue brilhando. E que Deus te receba aí em cima, olhando por nós".
 
A editora Maria Mazzarello, da Mazza Edições, completa: "Infelizmente,  não convivi com ela o quanto gostaria, pois, no momento que ela estava atuando na dança, e fazendo um trabalho importantissimo, eu estava numa outra frente, que era o princípio da editora, e, ao mesmo tempo, como secretaria-adjunta da Secretaria Municipal da Comunidade Negra. A Marlene, ela ia muito lá, na Smacon, buscar apoio para seus espetáculos. E a Diva Moreira, secretária, sempre fazia questão de apoiar os projetos dela porque, num certo sentido, eles fortaleciam o nosso, o que a gente defendia,  o papel do negro na sociedade", diz.
 
Mazza prossegue: "Marlene Silva era aquela fortaleza. Uma mulher negra, brilhante. Se dedicava ao ofício de ensinar, e, me perdoe divagar um pouco, nesse ponto da conversa, mas é uma pena que o nosso país não dê a importância devida aos professores. Talvez agora, com as crianças em casa (referindo-se à quarentena imposta pelo advento do novo coronavírus), e os pais muitas vezes sem saber lidar com elas, entendam. Marlene reinou e deixou discípulos como o Evandro Passos, que levou para ainda mais longe o saber dela. A atuação dela deixou um enorme lastro".
 
A dançarina, professora e pesquisadora Júnia Bertolino, da Companhia Baobá, também deu o seu depoimento. "Marlene sempre foi uma grande representante para nós todos, de BH, e para mim, particularmente, pela questão do feminino, na auto-estima, na valorização da nossa história, no saber que somos capazes. Uma mulher sempre positiva, sempre alto astral. E imagina o que essa mulher não passou na vida". Júnia lembra que um dos ensinamentos dela sempre foi que a dança começa no rosto. "A gente ter prazer de dançar e transmitir isso com alegria. A expressão, coordenação e comunicação. Ela sempre falava isso, que esses três pilares eram muito importantes para o bailarino. E eu particularemente tive oportunidade de participar de espetáculos importantes com ela, como 'Kizomba 500 Anos' e 'Brasil Mestiço', alguns realizados no Palácio das Artes, outros no teatro Francisco Nunes", relembra. 
 
Ao colocar em repasse sua trajetória na dança, Júnia lembra que começou com Evandro Passos, "passando por Marlene Silva, Carlos Afro, Mestre João Bosco, Mamour Bá... Então, eu, desses 20 anos para cá, convivia com ela, sempre. Inclusive, desde o ano passado ela queria lançar o espetáculo dela, de 50 anos de Marlene Silva, e me convidou para uma participação. O que tenho a dizer é isso, que foi uma grande perda". Ao mesmo tempo, Júnia se diz feliz por Marlene ter tido reconhecimento em vida. "Dois anos atrás, eu participei do episódio de documentário 'Retratos da Dança', da Rede Minas, e propôs projetos, e hoje tivemos uma resposta da emissora, a de que vão fazer um documentário especial sobre Marlene Silva. E o Forum da Dança também vai fazer uma homenagem especial a ela. Então,que bom, estou feliz".
 
A própria Companhia Baobá homenageou Marlene Silva há dez anos. "Foi quando aconteceu o primeiro prêmio Zumbi de Cultura, que está completando dez anos. Em 2010, que foi a primeira edição, no Palácio das Artes, ela recebeu o prêmio, representando a potência da dança negra em Minas Gerais e no Brasil. Aliás, o vídeo desse momento está no YouTube. E 2017, a gente teve a honra de levar a Marlene para uma roda de conversa no foyer do Grande Teatro do Sesc Palladium, e com o título '80 Anos de Arte, Resistência e Luta de Marlene Silva'. Sem falar a homenagem da mostra Benjamin de Oliveira, em 2018, muito bonita, porque bailarinos como Rui Moreira e Maurício Tobias, grande referência do jazz em BH, estavam presentes, fazendo homenagens juntamente a artistas como Marcinho, percussionista que acompanhou ela a vida toda, tocando para ela, e a galeria jovem, o neto dela participou, o Benjamin Abras, o Evandro Passos, companhia Bataca, eu, com a Baobá".
 
Como professora da Escola Livre de Arte/Arena da Cultura, Júnia Bertolino diz que faz questão de, em todos os módulos relacionados à cultura popular que ministra, seja no setor do patrimônio ou no da dança, passar um documentário falando sobre a vida de Marlene, bem como de suas influências, como os documentário sobre Mercedes Baptista.
 
Em tempo: Marlene Silva participou de programas como o "Fantástico", da Rede Globo.  Também se apresentou em centros como o Wellesley College, Sulffolk University, The Boston Globe e The Boston Phoenix (EUA); e, ainda, esteve no palco em um espetáculo de Milton Nascimento.

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