Apesar da ação do tempo, a imagem continua ecoando. E, embora já não esteja nítida, percebemos que, sentada em um banquinho de madeira, a criança usa uma peruca preta, da cor da sua pele. Mas os fios artificiais são lisos, o que provoca o choque que permanece.
“Agora consigo falar e discutir sobre determinados momentos da minha vida que foram muito dolorosos, onde parecia que estava tudo bem e, na verdade, não estava. Se for preciso a gente chora, cai, mas levanta. Não é negar a dor, mas sim como passamos por ela”, afirma a cineasta Meibe Rodrigues, que enfrenta essa e outras questões, relativas ao racismo e à violência de gênero, por exemplo, no curta autobiográfico “Nunca Pensei Que Seria Assim”, premiado em dois festivais e uma das atrações da “IV Mostra Periferia Cinema do Mundo”, em cartaz desta terça (12) a 17 de dezembro no Cine Santa Tereza, com entrada gratuita.
Meibe, que se encantou pelo cinema indo assistir com o irmão a filmes de kung-fu, levada pela tia, se define como “povo, gente comum”, e acredita na “responsabilidade em tratar a arte não apenas como entretenimento, mas engajamento para uma mobilização individual e coletiva”.
“A periferia tem os seus valores. Pessoas que fazem histórias e fortalecem esse território com suas vivências. É preciso mostrar para o mundo, que, se chegamos até aqui, é porque houve muita luta e esforço”, reivindica a diretora que também é atriz e começou no teatro. Na abertura do filme, ela recorre a uma frase da escritora Conceição Evaristo, símbolo de um movimento ancestral e contínuo de valorização da cultura negra.
Coordenadora do Cine Santa Tereza, Vanessa Santos reforça a importância da empreitada, que lança um olhar aguçado sobre uma “produção expressiva e crescente”, que ainda carece de “maior difusão e circulação”. “Enquanto cinema público, nossa missão é promover o acesso ao audiovisual da cidade, o que inclui a produção oriunda das periferias, do subúrbio de Belo Horizonte e sua região metropolitana”, afiança a gestora.
Com 16 filmes, a iniciativa oferece um cardápio variado de gêneros e formatos, indo dos documentários e videoclipes à ficção experimental. “O olhar contemporâneo para a memória e a ancestralidade, a relação sociocultural com a música e a autorrepresentação da subjetividade da juventude negra e periférica estão muito latentes, até porque, neste último caso, é uma forma de superar as representações midiáticas, que tendem a não positivar esse tipo de experiência. Tudo isso revela uma diversidade e riqueza cultural que podem pautar discussões do público em geral que são de interesse da coletividade”, sustenta Vanessa.
A forte presença feminina é mais um diferencial. Indicado para representar o Brasil no Oscar, o longa acreano “Noites Alienígenas” encerra a mostra, cuja programação completa pode ser conferida no site www.sympla.com.br/cinesantatereza.
Um viaduto que não vai para lugar nenhum virou ponto de encontro para a juventude pobre, majoritariamente negra, que aproveita o espaço ermo para praticar manobras perigosas sobre duas rodas, conhecidas como “grau”, durante o pôr do sol em Sabará, a 17 km de Belo Horizonte.
Morador da região, Higor Gomes se habituou a perambular no entorno da Vila Operária durante a pandemia, seduzido pelo cenário tranquilo, calmo, rodeado de montanhas e “afastado de tudo”. A chegada dos motoqueiros trouxe um elemento novo que agregou complexidade à cena. A beleza passou a conviver com o perigo, contraste que fascinou o diretor e embasa “Ramal”, outro destaque da programação da mostra que acumula premiações.
“Além de uma válvula de escape para o dia a dia árduo, esses jovens enxergam o ‘grau’ como uma forma de arte”, destaca Gomes. O aspecto performático da atividade determinou uma das opções estéticas do cineasta. Ao invés de documentar, ele arriscou a ficção, linguagem que permitiu “fabular e corporalizar” uma sensação premente de “descontinuidade”.
“Essa é uma palavra muito presente em Sabará, pela ausência de espaços de lazer para a juventude, que reconfigurou esse território para si. Tentei materializar a carga de quem vive aqui sob o estigma de uma cidade atrasada, parada no tempo”, analisa.
Segundo o cineasta, os pilares de concreto na entrada da cidade representam esse abandono que afeta a autoestima dos habitantes, sufocados por uma infraestrutura precária. À dura realidade, Gomes contrapõe, sem deixar de encarar, um “realismo fantástico”. Dos cinco rapazes que protagonizam seu curta-metragem, alguns têm mais de um emprego e, à noite, trabalham como entregadores de aplicativo. “Muito focados em redes sociais”, essa característica se tornou aliada e, ao mesmo tempo, impasse.
“Eles estão acostumados a performar para o Instagram, não ficam intimidados com a câmera, mas se habituaram a uma dinâmica imediatista, e o cinema demanda um tempo de demora”. O próprio roteiro, aliás, busca essa serenidade rítmica, de contemplação e relaxamento, o que não impediu Gomes de, empolgado para não perder uma sequência de tirar o fôlego, subir em cima de uma moto para filmar.
“Não precisamos ir a Hollywood para produzir filmes com apuro técnico e força política, podemos olhar para dentro. O nosso desejo de permanecer no cinema é muito grande, mas dependemos de editais e incentivos públicos”, finaliza ele, fitando no horizonte a magia de uma moto que abandona o concreto para alcançar o etéreo.
O quê. “IV Mostra Periferia Cinema do Mundo”
Quando. Desta terça (12) a 17 de dezembro
Onde. Cine Santa Tereza (rua Estrela do Sul, 89, Santa Tereza)
Quanto. Gratuito mediante retirada de ingressos pelo link www.sympla.com.br/cinesantatereza ou na bilheteria do cinema meia hora antes do início das sessões