Quadrinhos

Nascido há 80 anos, Henfil revolucionou as tirinhas ao aliar humor e política

Cartunista criou personagens memoráveis como a Graúna, Bode Orelana, Zeferino, Fradim e Ubaldo, o Paranoico

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 05 de fevereiro de 2024 | 06:30
 
 
 
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Numa carta, é a própria mãe quem pergunta: “Meu filho, você é louco?!”. Já o irmão mais velho, o sociólogo Betinho (1935-1997), o chamava de “rebelde do traço”, definição difícil de ser superada. Nascido há 80 anos, Henrique de Souza Filho, o popular Henfil, se assumia “mineiro, carente, agressivo, cigano e humorista”. 

Questionado pelo âncora do extinto programa “Vox Populi”, da TV Cultura, na entrevista concedida em 1978, uma década antes de morrer prematuramente vítima do vírus da Aids, contraído após uma transfusão em razão de sua hemofilia – na época, os bancos de sangue não eram fiscalizados pelo governo –, se “mineiro significava estar no meio”, dá uma demonstração clara de sua rapidez de raciocínio, como se apertasse um gatilho: “no meio do bolo”. 

Antes que o termo “multimídia” fosse inventado, Henfil trabalhou em cinema, teatro, televisão, jornal e revista, inspirando até marcha carnavalesca. Foi desenhista, cartunista, comediante, jornalista, escritor, diretor e apresentador. Usou da imagem, da palavra e do som para passar seu recado. E criou uma profusão de personagens, que, como destaca o humorista Gregório Duvivier, “fazem parte do inconsciente coletivo brasileiro”. 

“As pessoas talvez não saibam o nome, mas conhecem os personagens, um pouco como a Mafalda para os argentinos e o Asterix para os franceses”, compara Duvivier, que atribui essa conquista a duas características, presentes na forma e no conteúdo, e, que, aparentemente, eram contraditórias entre si. “Do ponto de vista da composição das personagens, elas têm muitas nuances, contrastes, são tridimensionais, não se restringem a arquétipos de bem e mal, embora, graficamente, o traço seja franciscano”, observa. 

Traço

O cartunista Aroeira concorda. “O Henfil utilizava o desenho estático para inserir movimento, e conseguia esse efeito ao reduzi-lo às suas linhas principais, o que era uma tendência daquele momento, devido à influência do (cartunista romeno) Steinberg e de outros artistas do traço. Essa inovação é um dos toques da sua genialidade, baseada na linha curva, sinuosa. E, em relação ao texto, a definição das personagens tinha uma coerência absurda, digna das maiores peças de teatro. Eram densas, profundas, cheias de conteúdo”, enaltece.   

Esse universo propiciou a Aroeira “muitos momentos emocionantes”, surpreendentes para um artista que trabalhava com humor. “Posso dizer, na boa, que chorei lendo uma tira do Henfil”. O episódio se refere a uma das mais icônicas criações do cartunista, quando a Grauninha, filha da Graúna, sobe para o céu após sua morte. “Aquilo me arrasou por muito tempo, e me arrasa até hoje”, admite Aroeira. Duvivier experimenta sensação parecida toda vez que se depara com “um quadrinho excepcional, que é a cara da força que ele tinha”. 

Um sujeito sai correndo para avisar ao jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado pelo regime militar, que a anistia saiu, mas dá de cara com o túmulo do então diretor da TV Cultura. “Não precisa dizer mais nada. Ficamos com um monte de perguntas na cabeça que o Henfil não fazia, porque ele nunca dava legenda. Anistia pra quê? Para quem? Para os torturadores? Para quem matou Herzog? Quem ficou feliz com essa anistia?”, indaga Duvivier. 

Túmulo do jornalista Vladimir Herzog serve de crítica de Henfil à anistia proclamada na ditadura militar

Personagens

Ivan perdeu o pai quando tinha dezoito anos. Filho único de Henfil, ele conta que só conseguiu estabelecer uma espécie de “convívio diário” quando o cartunista não estava mais vivo, através dos desenhos que ele deixou. Como autêntico rebento de pais separados, o contato da infância se restringia, quase sempre, a programas de final de semana, como passeios em parques. “Foram fases diferentes da vida, e, infelizmente, na fase adulta, ele não estava mais aqui. Sinto falta de ter tido certos diálogos com ele que acontecem quando a gente fica mais velho”, relata Ivan. 

Do pai, ele herdou a paixão pelo Flamengo. E, só na maioridade foi descobrir que, graças a uma criação de Henfil, a torcida rubro-negra adotou o Urubu como mascote. A personagem era uma forma de responder ao racismo dos adversários. Henfil também celebrizou o Bacalhau e o Pó de Arroz como símbolos de Vasco e Fluminense. No final da década de 1960, já colaborando com “O Pasquim”, Henfil criou a revista “Fradim”, que lhe abriu, definitivamente, as portas do sucesso. 

Henfil criou os mascotes dos clubes cariocas que foram adotados pelas torcidas

Seu alter ego, o Baixim, expressava o “jeito moleque, brincalhão”, enquanto o frade Cumprido representava a rígida formação religiosa que ele teve em Minas Gerais, sendo natural de Ribeirão das Neves. “Era um humor muito mineiro e belo-horizontino, de um cara que morou ali na Praça dos Hospitais, próxima ao Parque Municipal, e que viu toda aquela miséria humana de forma exacerbada”, avalia Aroeira. Com a Graúna, pássaro típico do Nordeste, “o aspecto contestador” ficou ainda mais aflorado. Era também o único personagem feminino de Henfil, que se orgulhava desse seu “lado mulher”. 

À medida que foi se politizando, Ivan aproximou-se da Graúna. “Os personagens eram uma evolução e uma mistura da personalidade do meu pai”, diz ele, que não consegue escolher um favorito, justamente por ter se afeiçoado a cada um deles em diferentes etapas da vida. Aroeira, por outro lado, não esconde que a Graúna, “acompanhada pelos queridos” Zeferino e Bode Orelana, este último inspirado no animal de estimação do cantor Elomar, que teria comido um manuscrito de Karl Marx, o “impactou demais”. 

Estilo

“O Henfil começa já impactado pela desigualdade, e, como hemofílico, assim como os irmãos, ele também estava acostumado a um certo sadomasoquismo embutido na medicina, então brincava com isso. Essa visão do humor como ferramenta de crítica e transformação social estava presente no Henfil e na maior parte dos chargistas da época. A crítica que ele fazia era feroz, o fato de ser através do desenho não a tornava menos aguda”, aponta Aroeira, que busca um exemplo histórico para realçar a tese. 

“Há relatos de caricaturas de chefes e líderes políticos em paredes romanas e subterrâneos de pirâmides egípcias. O humor como crítica e gozação é secular, e o Henfil levava isso à frente com aquele enorme sentimento de injustiça versus justiça que ele tinha desde criança”. O próprio Henfil afirmava que o que o movia era “a solidariedade com todos aqueles que sofrem”. Duvivier acredita que nesta aliança entre política e humor reside o trunfo de Henfil. 

“Ele tinha poder de síntese e a capacidade de dar a porrada de maneira elegante e discreta. Sabia como ninguém driblar a censura e dizer o que precisava ser dito, ainda que nas entrelinhas. Todo o humor político brasileiro tem no Henfil uma referência pela coragem, mas, também, pela sutileza, duas coisas que nem sempre andam juntas. Humorista quando é muito corajoso, às vezes perde a delicadeza, e, quando é delicado demais, pode perder a piada”, constata Duvivier. 

Tirinha com Graúna, Bode Orelana e Zeferino foi um dos maiores sucessos da carreira de Henfil

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