Realizada em setembro passado, a edição 2020 do projeto Circuito Urbano de Arte (Cura) tinha tudo para ser lembrada pelo saldo positivo: afinal, mesmo tendo sido realizada em plena pandemia, registrou recorde de audiência virtual – fotos das obras foram compartilhadas a rodo nas redes sociais. No entanto, após os ataques à instalação “Entidades”, do artista indígena Jaider Esbell, e da ação judicial de um morador do condomínio Chiquito Lopes contra a obra da artista Criola, pintada em uma empena da edificação, uma nova celeuma atinge o projeto e gira em torno da obra “Deus é Mãe”, do artista Robinho Santana, que ocupa uma área total de 1.892 m² da fachada do edifício Itamaraty, localizado nas imediações da igreja de São José, na área central de BH. Na verdade, trata-se da maior obra de arte pública já criada no Cura. 

Embora o projeto tenha sido tocado com amparo legal, as três idealizadoras do Cura foram surpreendidas nesta semana com uma intimação, oriunda do Departamento Estadual de Investigações de Crimes contra o Meio Ambiente, da Polícia Civil de Minas Gerais, citando as curadoras Juliana Flores, Janaína Macruz e Priscila Amoni, além de empresas que patrocinaram o festival. A alegação é que, por conter letras com a estética do “pixo” emoldurando a pintura, a obra seria criminosa.

Na verdade, o painel pintado por Robinho contou com a colaboração dos artistas belo-horizontinos Poter, Lmb, Bani, Tek e Zoto, convidados pelo próprio artista e pelas curadoras do circuito. Eles fizeram a intervenção artística das letras, na estética citada, mas com o endosso de todos os envolvidos. 

Vale lembrar que a destinação de uma empena para uma pintura só é viabilizada após uma série de trâmites, que incluem um contrato prévio com o condomínio. Desde que teve início, o Circuito Urbano de Arte só teve problemas jurídicos nesta última edição, com o já citado caso do morador do Chiquito Lopes.

Advogado do Cura, Felipe Soares conta que a pendenga atual vem de antes da realização da edição 2020, quando um morador do edifício Itamaraty, na ocasião síndico, teria entrado com uma queixa no Departamento de Investigações de Crimes contra o Meio Ambiente por causa de pichações feitas no passado. 

No entanto, com o Cura, tais “pixos” deram lugar à pintura (autorizada) de Robinho Santana. Agora, é justamente o contorno da obra o ponto nevrálgico – pela citada estética, como pode ser visto nas fotos. No entanto, nesse caso, elas são parte da obra. De acordo com advogado Felipe Soares, o delegado entendeu que deveria incluir o Cura na ação anterior. 

Conforme a Lei 9.605/1998, em seu artigo 65 e incisos seguintes, a pichação é considerada vandalismo e crime ambiental, que estipula pena de detenção de três meses a um ano, e multa, para quem pichar, grafitar ou por qualquer meio conspurcar edificação ou monumento urbano.

Já o grafite não constitui crime se realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente. 

Trocando em miúdos, o problema, aqui, seria a borda. Em tese. Para os envolvidos, a questão avança para outros territórios, como o racismo. “Não tenho outra palavra para dizer o que estou sentindo a não ser uma grande tristeza, uma confirmação de que o Brasil é racista e está dando passos para trás”, diz Robinho à reportagem. “Trata-se da maior empena de BH, feita por mim junto a artistas locais. Essa repercussão é muito chata, parece uma briga para definir o que é arte”, pontua ele, que ainda não recebeu intimação. “Mas tudo indica que vai acontecer, pois a minha assinatura está no projeto à frente dos outros (artistas)”. NR. A obra é assinada por Robinho e amigos. 

Robinho arrisca-se a dizer que, se a tipologia fosse diferente, não haveria problema. “A pichação é uma construção cultural das regiões periféricas. Então, vejo como uma tentativa de silenciar essa população negra e periférica”. Priscila Amoni, uma das curadoras do Cura, concorda. “O festival foi feito com o respaldo de todas as legalidades, tudo correto, impecável. Convidamos as pessoas como artistas, com pagamento de cachê, tudo absolutamente legal e autorizado. Por isso ficamos ainda mais surpresas e indignadas. Para além de toda tentativa de criminalização do evento – e nós não atuamos com nada criminal ou ilegal –, vejo uma criminalização da arte por meio da estética, que é, na verdade, uma ferramenta do estado de perseguição a jovens negros da periferia. A gente não pode aceitar isso. Não pode ser desculpa para prender pretos jovens periféricos”, diz ela, acrescentando que as autoridades não podem se arvorar a agir como curadoras de arte. “Dizer o que é belo ou o que é feio”. 

Sobre as pichações em um escopo mais amplo, Priscila salienta que o Circuito de Arte Urbana não tem controle do que acontece anteriormente à realização da edição (caso da ação impetrada pelo morador antes da pintura artística, pois consta que há moradores que entendem ser os artistas convidados por Robinho agora os mesmos que fizeram as pichações) ou fora desse âmbito. “Mas a pichação é um delito, não é um crime, não é formação de quadrilha. A nossa luta é para que isso também não seja ‘over’ criminalizado, para que não seja atrelado a outros tipos de crime, que seja cumprida a lei como ela deve ser”, entende ela.

Procurada pela reportagem de O TEMPO, por telefone, o Departamento Estadual de Investigações de Crimes contra o Meio Ambiente, da Polícia Civil de Minas Gerais, por meio de uma atendente, informou que a posição oficial é que “o inquérito policial ocorre sob sigilo e, no momento oportuno, serão dadas mais informações”. O advogado que atende o Cura entrou com uma petição para trancamento do inquérito. “Agora, cabe ao Judiciário. Fisicamente, o inquérito ainda está na polícia, mas a competência passa a ser do TJMG”, diz Felipe Soares, emendando que entende a ação como “autoritária e perigosa, por tentar cercear a liberdade artística”. 

Lugar de afeto 
Robinho conta que, ao receber a proposta para deixar seus traços impressos na maior empena da cidade, de imediato pensou no que faria jus a essa magnitude. Veio-lhe a ideia da força de uma mãe negra, com suas crianças. Num primeiro momento, ele diz ter se inspirado na própria mãe, dona Josefa Santana, hoje com 75 anos. “Embora meu pai fosse presente, como eram separados, ela cuidou de quatro crianças com garra”.

Recentemente, a família descobriu que Josefa precisava se submeter a uma operação para retirar um tumor cerebral. “Achei que ia perdê-la. Mas, veja, logo depois da cirurgia, que foi extremamente delicada, ela, ainda debilitada, em certo momento olhou pra mim e perguntou: ‘Já comeu, menino?’. Pensa uma força. É isso que eu quis dizer, e é isso que a obra diz. Essa é uma história particular, mas sei que reverbera em outras pessoas, que revisam suas histórias a partir do que estão vendo. Quantas vezes ouvi: ‘Poxa, parece minha mãe comigo e meu irmão’. São tantas pessoas postando que minha namorada até me aconselhou a parar de compartilhar, para não ficar chato. Então, enxergo (falando da ação) como o Estado se esquecendo de olhar para esse lugar emotivo, de afeto, e colocando um inquérito criminal por cima”.

Confira, a seguir, a cronologia dos fatos de acordo com a assessoria de comunicação do Cura

* Em 2019, o Ed Itamaraty autoriza, por unanimidade, em assembleia, a pintura da fachada pelo festival Cura.

* Em fevereiro de 2020, o festival envia contrato paro Itamaraty para o condomínio participar da edição de 2020, e  foram iniciadas as conversas pra alinhar a produção da obra

* Em junho de 2020 o Ed Itamaraty foi pichado e a policía abriu um inquérito para investigar esse crime e descobrir os autores dos pixos. O Cura não teria sido informado desse inquérito.

* Em setembro de 2020, na fase de produção da pintura do Itamaraty, com intuito de criar um diálogo estético com a cultura do pixo e estabelecer uma ponte com outros artistas, Robinho Santana e as curadoras do Cura convidaram pixadores pra fazer intervenção na obra “Deus é mãe”. Não foi a 1ª vez que o Cura fez isso. Um grande exemplo é a obra “Ajo y Vino”, da Milu Correch, pintado em 2017, durante o festival.

"Importante ressaltar que a pintura foi realizada dentro da legislação municipal, com autorização da Diretoria de Patrimônio e contrato com o prédio. Os pichadores foram contratados como artistas pra criar junto com Robinho Santana, receberam cachê, formação NR35 pra subir no valancin e contratamos seguro de vida", diz o Cura.

* Em dezembro de 2020, o Cura foi incluído no inquérito pelo crime de pichação por causa da intervenção na obra “Deus é mãe”

Sobre o Cura

O Circuito Urbano de Arte encerrou sua 5ª edição entregando 18 obras de arte em fachadas e empenas, sendo 14 na região do hipercentro da capital mineira e quatro na região da Lagoinha, formando, assim, a maior coleção de arte mural em grande escala já feita por um único festival brasileiro. 

O Cura também foi o responsável pelo primeiro e, até então, único Mirante de Arte Urbana do mundo. Todas as pinturas realizadas no hipercentro podem ser contempladas da Rua Sapucaí.

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