Música

Otto mantém a essência pop em 'Canicule Sauvage', seu disco mais experimental

De peito aberto às tecnologias, compositor pernambucano criou o novo álbum quase todo no GarageBand: 'A música do futuro está aqui'

Por Bruno Mateus
Publicado em 10 de maio de 2022 | 08:13
 
 
 
normal

Otto atende o telefone e, logo em seguida, pede licença. Ele diz algo inaudível. Panda e Michel, os dois gatos do cantor, estão por ali na sala do apartamento onde moram em São Paulo. Otto está tentando entender o que Panda quer. “É uma fase”, tenta explicar, “ele está ‘mijando’ em tudo”. Otto cogita até se mudar para resolver a situação. “É uma coisa que pode acontecer”, comenta. O pernambucano, então, esquece Panda e Michel e, com satisfação e alegria notáveis, começa a falar sobre “Canicule Savage” após a primeira pergunta.

Otto está feliz e orgulhoso de seu novo disco, o sétimo de estúdio de uma carreira solo que tem início no fim dos anos 1990, após ele participar como percussionista de duas bandas fundamentais para a música popular brasileira daquele período: a Nação Zumbi e o Mundo Livre S/A. Recém-lançado nas plataformas digitais, o álbum é o mais experimental de toda a discografia do artista. “É o mais autoral, o mais amalgamado, mais self-experiment… ‘Canicule’ é um disco livre. Pela primeira vez coloco minha música na essência criando harmonias com instrumentos, meus arranjos, colocando letras nas minhas melodias”, conta.

Otto já estava com “Canicule Sauvage”, a faixa que abre o disco, na cabeça há quatro ou cinco anos. A batida surgiu no verão francês de 2017 — ou de 2018, ele não se lembra com exatidão —, onde Otto passava uns dias com sua ex-esposa, a fotógrafa Kenza Said, dona de uma das vozes femininas que aparecem sussurrando na canção — a outra é da cantora Anaïs Sylla. Cheia de guitarras rasgadas e tecladinhos, a canção-título, interpretada em francês, é misteriosa e sexy.

Em Marseille, após idas à praia, restaurantes e botecos, Otto, impregnado de Serge Gainsbourg,  começou a colocar voz na canção. “Essa música saiu num dia lindo de verão, um canicule muito bonito. É sobre isso que eu quero falar, pensei. É um rock and roll, sei lá, e para a minha interpretação vejo como uma balada”, comenta.

Canicule (ou canícula, em bom português) é o termo usado para identificar época do ano em que o calor do verão se intensifica no Hemisfério Norte. O nome remete à Grécia Antiga, quando a constelação Cão Maior alcançava uma posição central no céu e isso correspondia aos dias mais quentes do ano, conhecidos como “dias de cão”.

Para Otto, essa onda de calor é a metáfora para tocar em questões ambientais, como o paulatino aquecimento global, e a “chapa quente que assola a Terra”. Otto precisa falar, não pode guardar o que o incomoda: “A onda de calor também é o fascimo, essa onda quente de guerra. Aqui no Brasil a gente tem uma canícula autoritária, um cara que corrobora com o desmatamento. Não é fácil”.

“Canicule Sauvage” é um disco feito com mão, cabeça e resistência. O álbum, embora com suas particularidades e características próprias, dialoga com todos os seis trabalhos anteriores de Otto e fecha um ciclo que começa em 1998 com “Samba Pra Burro”: “Em todos os ciclos da minha vida tenho inventividade e uma criatividade que me alimenta, mas também me faz sofrer e chorar. Essa é a minha vida”.

Do pandeiro ao GarageBand

“Sambra Pra Burro”, primeiro e elogiado disco de Otto”, foi lançado em 1998. O álbum foi composto todo no pandeiro. Era ao som do instrumento que o pernambucano ia improvisando, colocando letras aqui e ali. De lá pra cá, Otto pegou os avanços tecnológicos com as duas mãos e, sem pudor ou medo de soar superficial, usou e abusou do que o universo digital tem a oferecer de recursos aos artistas. Se há 24 anos o pandeiro ocupou papel de protagonista, agora o GarageBand, aplicativo da Apple que acompanha o músico há um bom tempo, foi o parceiro de todas as horas e lugares na feitura de “Canicule Sauvage”.

O GarageBand é praticamente um estúdio de música dentro do celular com possibilidades diversas de gravação. No isolamento da pandemia, foi o companheiro perfeito para Otto. “Tive que meter a mão no celular, e tudo ficou mais interessante na pandemia, sozinho em casa. Fiz música na sala, na cama, no banheiro. Virei meu maestro, meu guitarrista. Era tudo instinto — com minha musicalidade, claro, mas é instinto”, ele diz. O cantor celebra as ferramentas tecnológicas e brinca quando menciona um ser divino, “o deus digital”. Otto está convicto: “Imagina a quantidade de menino fazendo música com esse GarageBand. A música do futuro está aqui”.

“Canicule Sauvage” é rock, é samba, é dançante; é manifesto sentimental, é rap, é maracatu e tudo isso ao mesmo tempo. O álbum mostra a essência pop de Otto. De tão pop, a música dele sempre será experimental. De Reginaldo Rossi a Red Hot Chili Peppers, passando sempre pelo eletrônico, Otto ressalta que a música vem de todos os lugares, regiões, instrumentos e dispositivos. “Ainda bem que estou nessa corrente. Como não ia me abrir a isso?, pergunta, em alusão ao GarageBand e ao celular, estúdio que cabe no seu bolso. “Quero mexer com música nesse lugar. Vou caminhar por aí. Antes era o pandeiro, hoje é o iPhone”, completa.

Com participações de Nina Miranda, Lirinha, Ana Cañas, Tulipa Ruiz e Lavínia Alves, cantora, atriz e namorada de Otto, “Canicule Sauvage” também marca o reencontro do compositor com Apollo 9, produtor de “Samba Pra Burro”. Foi Apollo quem ajudou Otto a dar ao álbum a cara contemporânea, moderna e diversa que aparece nas 11 faixas.

“Ele consertou uma coisa aqui e ali. É tipo 70% de GarageBand e o resto Apollo tirando um som”, pontua Otto. Em “Canicule Savage”, Apollo 9 toca pianos elétricos e digitais, sintetizadores, baixos, guitarras, gaitas e outros instrumentos eletrônicos, além de dividir a produção musical com Otto.

“A gente trabalhou muito junto, esse disco tem 20 dedos. É um trabalho muito a dois. Apollo conhece minha música desde cedo. Cheguei com um caminho e ele deu amplitude ao som, é um cara que enxerga, que conhece tudo de música. Nós nos respeitamos muito e nos divertimos”, ressalta. Pela primeira vez na carreira, Otto assina a produção de um disco seu. Naturalmente, quando começou a compor as batidas no seu celular, o cantor já sentiu que ali já era um processo da produção. Não havia como escapar. “Não tinha como não ser, ali já era a criação máxima, muito minha”, afirma.

Das 11 músicas do disco, sete têm mais de quatro minutos de duração, algo incomum para os padrões atuais de consumo cada vez mais rápido e efêmero de uma canção. Otto não está preocupado com isso. Pelo contrário, ele gosta que suas músicas tenham quatro, cinco, até seis minutos, como é o caso da faixa-título. As interpretações ganham espaço e não ficam presas a um determinado limite de tempo. “Eu prefiro assim, e Apollo também”, ele enfatiza.

Após o lançamento, Otto continuará mostrando as canções de “Canicule Sauvage” em algumas cidades. De volta aos palcos, o compositor toca em Belo Horizonte, na Autêntica, em 16 de julho. Até lá, ele segue criando no celular na cama, na sala ou no banheiro, pintando seus quadros e tentando entender o que está acontecendo com o gato Panda.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!