A pesquisadora Julliany Mucury nasceu em Brasília no início dos anos 80, mesmo período em que Renato Russo dava os primeiros passos com a Legião Urbana, banda que acabou se tornando um dos símbolos do rock da cidade e de toda uma geração nos quatro cantos do Brasil. No entanto, a relação de Julliany com a música de Renato começou mesmo tempos depois.
Em 2009, ela ganhou dois discos da banda: “Dois”, de 1986, que traz as imortais “Eduardo e Mônica”, “Tempo Perdido” e “Índios”, e “Tempestade”, uma espécie de carta de despedida lançada três semanas antes da morte do cantor e compositor, em 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, em decorrência das complicações do HIV.
Naquele ano, Julliany sentou-se despretensiosamente a uma mesa com dois amigos, o poeta Nicolas Behr e o cineasta Vladimir Carvalho, no evento de lançamento do livro “Renato Russo: O Filho da Revolução”, do jornalista Carlos Marcelo. Papo vai, papo vem, de repente Nicolas lança uma pergunta no ar: “E aí, Renato Russo é poeta?”. “Minha relação começa aí de verdade”, ela lembra.
A partir dessa provocação, Julliany, cujo trabalho acadêmico já se desdobrava entre análise de poesia, literatura e canção, foi atrás de todos os álbuns da Legião, livros, documentários e obras que tinham como tema central o cara que escreveu “Faroeste Caboclo” com apenas 19 anos. Uma década de minuciosa pesquisa resultou na tese de doutorado “Renato Russo: Um Eu em Colisão Consigo Mesmo”, apresentada em 2019 na Universidade de Brasília (UnB) e que agora está prestes a ser adaptada para as páginas de “Renato, o Russo”, livro que está em campanha de financiamento coletivo (detalhes no fim da matéria) e será editado pela Garota FM Books.
E aí, Renato Russo é poeta? “Ele negava ser poeta, várias vezes afirmou ‘não sou poeta, sou letrista’. Isso fazia parte da persona que ele construiu”, responde Julliany Mucury. Em “Renato, o Russo”, a autora, de forma inédita, costura as fronteiras entre literatura e canção no trabalho desse carioca tão identificado com Brasília. Daí surge o malabarista da música e da poesia, ao fazer essa junção entre a melodia e a palavra.
“Ele foi mais que poeta, foi um cancionista. Ele conseguiu produzir um legado que vai além da letra da canção e da construção melódica”, observa a pesquisadora, para quem a resposta à pergunta daquela noite de 2009 aparece hoje de forma cristalina: “O Renato não dificulta. Quando você analisa as letras das canções, fica fácil fazer essa associação pelas referências que ele usava, pela escolha das palavras, pelo apuro e cuidado com os versos. Ele pensava uma riqueza de conteúdos para fazer músicas atemporais”.
O livro, que tem colaboração de Carlos Eduardo de Lima, passa uma lupa sobre todas as canções dos nove discos da Legião Urbana, mas também faz uma introdução histórica, política e social para contextualizar o Brasil e a Brasília dos anos 1980, período que marca o fim da ditadura militar, a transição democrática, um novo jeito de se produzir rock no país e a fundação da própria Legião. “Mostro como o criador se manifestou nas letras. Como posso dizer se ele é poeta ou não sem olhar tudo que ele escreveu?”, pondera a pesquisadora.
“Renato, o Russo” também não ignora a relação do artista com o amor, com as cidades e as complexidades de um cara que fala do tédio na escola, da contracultura, da angústia adolescente, dos questionamentos existenciais e da necessidade de se afirmar como sujeito no mundo. “O Renato colocava isso de uma maneira poética, é pura reverberação do desejo de existir. É um discurso que não morre, é comum a todos, o espírito da juventude tentando se localizar no mundo”, pontua.
Legado
Em 1934, o poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972) disse que “os artistas são a antena da raça”. Julliany enxerga em Renato Russo, poeta do rock, essa manifestação essencialmente jovem, libertária e questionadora, uma capacidade de projetar o tempo como se o próprio cantor estivesse além de qualquer limite físico, psíquico e geográfico.
“Ele tinha uma inquietude muito dele, uma certa genialidade como Bob Dylan, Raul Seixas, Cazuza - acredito que Renato seja dessa cepa. Aliás, ele era um profundo admirador do Dylan. Dizia que ‘Faroeste Caboclo’ era a ‘Hurricane’ dele. Olha que ousadia”, brinca a autora.
Com o livro, Julliany, que diz haver muito preconceito com a obra da Legião Urbana, espera reafirmar a importância da voz e da caneta de Renato Russo, cuja extensa bagagem cultural se reflete na música e no pensamento de um artista ainda tão presente no imaginário popular e na cabeça de quem foi de alguma forma influenciado por ele. Atual e longeva, a mensagem de Renato tem dor, raiva, coragem, solidão... e poesia.
“O legado dele precisa ser revisitado porque ainda faz muito sentido. É um trabalho de qualidade estética, a melodia é importante, mas por trás existe uma letra que merece ser observada, não é algo meramente comercial”, ressalta a pesquisadora.
Financiamento
“Renato, o Russo” (Garota FM Books) será viabilizado por meio de uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Catarse, no ar até domingo (12). A partir de segunda-feira, começa a pré-venda, que vai até 11 de outubro, quando a morte do cantor completa 25 anos. Há três opções de capa e várias modalidades de apoio ao projeto. A entrega dos livros está prevista para dezembro.