Tudo começou de maneira despretensiosa. Primeiro, houve o incômodo diante de um espaço vazio. Depois, o contentamento em preenchê-lo com um pedaço de história. Foi assim, com uma simples troca de xícaras – inicialmente, um afago entre amigos – que as famílias à frente do Café Palhares, do Comercial e Tabacaria Sabiá e do Café Nice oficializaram, simbolicamente, a existência de um circuito informal de estabelecimentos tradicionalíssimos da região central de Belo Horizonte. Nos locais, rastros de outras épocas são percebidos em todos os cantos. As paredes ostentam premiações, fotos históricas e reportagens impressas devidamente emolduradas. Há ainda os azulejos, a disposição do balcão e as estufas que preservam identidades resistentes aos modismos comerciais. Por fim, alguns itens, como vistosos ventiladores – de teto ou de parede – dão charme adicional a alguns desses lugares, testemunhando da idade daquele mobiliário.

Quem deu o pontapé inicial à troca de xícaras foi João Lúcio Ferreira, 66, proprietário do Café Palhares ao lado do irmão, Luiz Fernando Ferreira, 61. Em uma tarde, bateu o incômodo de ver vazio o espaço anteriormente dedicado à venda de maços de cigarro, que não são mais comercializados no local. Inicialmente, ele ocupou o vácuo com xícaras que levam o emblema do estabelecimento, fundado em 1938. Mas o resultado ainda não lhe parecia bom. Foi quando se lembrou que outros tradicionais cafés, o Comercial Sabiá, localizado no Mercado Central, e o Café Nice, nas imediações da praça Sete de Setembro, que também fazem parte do folclore do centro belo-horizontino, tinham suas próprias xícaras personalizadas.

“Eu tenho um bom relacionamento com eles, a gente se frequenta. Então pensei em simbolizar a nossa amizade trazendo as marcas deles para cá. Fui falar com o Pedrinho, no Sabiá, e com o Renato e o Tadeu, no Nice, e eles gostaram da ideia”, narra o economista que há 52 anos atua, com o irmão, à frente do negócio de família.

“Quando o João Lúcio chegou aqui com o sobrinho dele, o André (que, aos 33 anos, assumiu o comando do caixa do Café Palhares, sendo o principal nome da terceira geração no comando do empreendimento) chegaram aqui, pediram uma xícara nossa e explicaram a intenção. Eu achei a ideia tão fantástica que disse que, em vez de simplesmente dar a peça para eles, ficaria satisfeito de dar o presente aos amigos, desde que recebesse deles também uma xícara”, narra Pedro Henrique, 35, que administra – ao lado dos pais dele, Marco Aurélio, 64, e Luciana Ramos Moreira, 55, e da irmã, Thainará Moreira, 32 – o Comercial Sabiá, que funciona desde 1991 na mesma loja no interior do Mercado Central. O lugar é tido como um ponto de parada obrigatório no quadrilátero mais famoso da capital. 

Gesto igual fizeram Renato e Tadeu Caldeira, no Café Nice, fundado em 1939. “A ideia das xícaras veio da admiração que temos pelos nossos vizinhos e concorrentes. Porque, entre nós, até existe concorrência, mas ela é saudável, até porque, de certa forma, oferecemos produtos complementares uns aos outros”, explica o primeiro, detalhando que, sobretudo com João Lúcio, nutre uma amizade transgeracional. “Para você ter ideia, os nossos pais já eram amigos”, cita.

Itinerário da tradição

Esse roteiro informal oficializado simbolicamente pela troca de xícaras, aliás, já é percorrido espontaneamente por muita gente. Foi o que a reportagem observou durante visitas a estes locais no decorrer da última semana. Caso, por exemplo, de um grupo de rapazes que, coincidentemente, seguiu mais ou menos o mesmo itinerário de O TEMPO, que, na última terça-feira, circulou pelos três estabelecimentos.

Palhares. A primeira parada, para o almoço, foi no Café Palhares, bicampeão do concurso Comida di Buteco e que há 84 anos ocupa o número 638 da rua Tupinambás e assiste às transformações da capital mineira. Lá apreciamos o Caol (que já foi Kaol). O prato, vendido a R$ 25,90, leva couve, arroz, ovo e linguiça, iniciais que formam a sigla, além de, mais recentemente, ter recebido complementos, como molho de tomates, farofa de feijão e torresmo.

O “K”, do antigo Kaol, era de “Kachaça”, que, grafada desta forma, acompanhava a iguaria, que só foi cair no gosto popular e fazer história a partir dos anos 50. “Antes disso, a refeição era despretensiosamente servida em um pratinho de papel e, geralmente, devorada enquanto se fazia do meio-fio um democrático banco coletivo”, narra João Lúcio Ferreira, há 50 anos no comando do lugar. Hoje, o aperitivo precisa ser pedido à parte, a refeição é servida em um prato de louça e os clientes têm a comodidade de se assentar em um banco propriamente dito – que costuma ser bastante disputado na hora do almoço, embora o item seja vendido durante todo o dia, de 10h às 17h. Vale dizer: o balcão, que trouxe mais conforto para a clientela, segue democrático, acolhendo igualmente anônimos e famosos – Samuel Rosa e Henrique Portugal, do Skank, por exemplo, são fãs do lugar.

Nos 44 minutos que ficamos no local, quatro dos quais na fila, aguardando que um lugar vagasse, testemunhamos um intenso movimento. Os clientes rapidamente comiam e saiam dali, sensivelmente satisfeitos. Só no banco ao lado, foram seis diferentes vizinhos de balcão nesse pequeno intervalo de tempo. Essa grande rotatividade garante que o Palhares alimente cerca de 250 a 300 pessoas por dia só com o Caol – o lugar também serve café, salgados, pão de queijo, pastéis e outros petiscos e lanches.

Detalhe que, entre essas centenas de frequentadores, alguns têm tamanha intimidade com o lugar que já têm preferência por quem vai preparar o seu prato. “Fala com ela que é para mim, ela sabe como eu gosto”, disse uma mulher, na casa dos 40 anos, apontado para uma das balconistas.  “Tem alguns que já tem até o seu banco e não aceita sentar em outro”, conta Ferreira, divertindo-se. Os mais atentos observavam as três xícaras, postas lado a lado, e comentavam entre si histórias sobre aqueles locais – sobretudo, sobre as especialidades culinárias de cada um deles.

Nice. Depois dessa experiência, em busca de uma sobremesa, a reportagem percorreu 350 metros para chegar ao número 727, na avenida Afonso Pena, onde o Café Nice funciona há 83 anos. A pedida da vez, foi um creme de maisena com ameixa, por R$ 6,50 – dica do jornalista gastronômico Daniel Neto, o Nenel, do blog Baixa Gastronomia – e um frapê de coco, por R$ 7 – recomendação do ídolo atleticano Dadá Maravilha. Foi com alguma surpresa que observamos quando um grupo de amigos, que já haviam sido vistos no Palhares, chegaram ao Nice.

Questionados, os rapazes, na casa dos 30 anos, explicaram já ter o hábito de cumprir aquele itinerário. Mas reconheceram que, naquela terça-feira, tinham mais um motivo a mais para tanto. “Estamos apresentando para esse meu amigo, que não é daqui, as coisas boas de BH”, garantiu um deles enquanto, rapidamente, saia do lugar com toda aquela pressa que reina soberana nos caminhares no movimentado centro belo-horizontino, mas que destoa do clima do Nice, onde aposentados costumam fazer ponto, se alongando por horas em infindáveis conversas ao pé do balcão.

“Sabe o que acontece? Cerca de 80% das pessoas que entram aqui, estão constantemente aqui. Com eles, a relação deixa de ser puramente comercial. Não por acaso está inscrito na nossa xícara: ‘Café Nice, desde 1939 fazendo amizades’. E isso vale tanto para o nosso relacionamento com os fregueses quanto para as relações que eles estabelecem entre si”, garante Renato Moura Caldeira, 65, há 48 anos comandando o caixa do local, que é uma rota histórica de políticos na chegada do período eleitoral.

Apesar da correria dos rapazes, não passou despercebido que, coincidentemente, eles também estavam atrás do flã com ameixa, item que vem sendo redescoberto mais recentemente, mas que já teve seus tempos dourados entre as décadas de 40 e 60. Hoje, contudo, é preterido e quase desconhecido. “Sucesso mesmo fazem os salgados, o pão de queijo de queijo curado, que ficam na estufa, e o pão na chapa, que também prepara omeletes e ovos mexidos”, reconhece Caldeira, destacando que todos os itens são preparados inteiramente na octogenária e charmosa “casa de repasto”, como se lê em um antigo anúncio ali exposto.

Com menos pressa, o aposentado Wilson Benzaquen, 65, confessa que, seguindo à regra, ele também é desses que frequenta, com certa assiduidade, esses três tradicionais estabelecimentos belo-horizontinos. “Sempre gostei muito dessas casas”, diz. No Café Nice, onde ele estava na última quinta-feira, diz gostar do cafezinho coado e dos salgados. “No Palhares, costumo pedir o pastelzinho com café ou alguma comida de boteco”, explica. Já no Sabiá, a preferência é a broa de fubá com queijo canastra – iguaria que levou a reportagem rumo ao Mercado Central, onde o Comercial Sabiá funciona há 31 anos.

Sabiá. Caçula do trio, o lugar tem também inegável vocação para a tradição. Por lá, como nas outras duas casas, os proprietários – e os filhos deles – batem ponto diariamente, certificando-se pessoalmente da qualidade dos produtos ali servidos. E as receitas, tratadas como segredo de Estado, são repetidas há gerações. “A broa era receita da avó da minha esposa, Luciana, que fazia um queijo na fazenda só para fazer esse prato. A única modificação que fizemos, que deixou o item mais gostoso, foi usar queijo canastra”, expõe Marco Aurélio Moreira, fundador do Sabiá.

A fama do produto o precede. Enquanto esperava para ser atendido, este repórter foi abordado por uma turista. “É aqui que vende uma broa famosa?”, quis saber. Diante da afirmativa, prosseguiu: “É que minha filha, que mora aqui em BH, está com desejo”. Em seguida, alcançou o balcão e pediu duas fatias do item, que custa R$ 9 – que devem ser pagos em papel-moeda, já que, por lá, cartões de débito e crédito ou pix não são aceitos. “Um para levar, outro para comer aqui porque também quero experimentar”, exigiu com curiosidade.

Outro sucesso da casa é o dueto mineiro, que sai a R$ 16. O lanche é composto por um pão de queijo recheado com pernil e queijo. Todos os ingredientes passam por uma chapa quente antes de chegar ao cliente. “Eu tinha uma tia, na Zona da Mata, que, no Carnaval, na casa do meu avô, fazia um pernil que durava de sábado a quarta-feira. Eu me lembrei disso e eu parti desse preparo da proteína para servi-la com pão francês ou com pão de queijo. Quando a gente foi convidado a participar de um evento, aqui no Mercado Central, a Luciana resolveu incrementar e acrescentou o queijo canastra. Desde então, é um dos itens mais pedidos”, lembra Moreira.

Para Rafael Hígido, 34, que comanda a loja de condimentos Banca Santo Antônio, também no Mercado Central, o Sabiá é parada obrigatória. “Vir aqui é garantia de um bom papo entre amigos, afinal, os proprietários são muito acessíveis e rapidamente estabelecem vínculo de amizade com os clientes”, derrete-se. “E o café deles, a broa de fubá com queijo e o pão de queijo com pernil e queijo…”, comenta, em tom de aprovação. Opinião parecida deve ter Lulu Santos. É o que garante Moreira, mencionando que o músico está entre os apreciadores dos itens servidos no lugar. Outro frequentador famoso foi Chico Anysio (1931-2012). “Por muitos anos, foi meu cliente de rapé”, conta o fundador do Comercial Sabiá, lembrando que o negócio nasceu como uma tabacaria e, gradualmente, foi se transformando até ganhar a forma que tem hoje.