Nos centros hegemônicos da cultura ocidental, o campo do documental adquiriu, nas últimas décadas, notório destaque, em detrimento do estrato ficcional. Em meio a esse contexto, como reafirmar o papel da ficção como instrumento crítico de transformação da sociedade? É sobre esse e outros dilemas que a professora Vera Follain de Figueiredose debruça em "A ficção equilibrista: narrativa, cotidiano e política", livro recém-lançado pela editora mineira Relicário em co-edição com a Ed. PUC-Rio.

Por meio de ensaios, cujo eixo gira em torno das relações estabelecidas no campo do cinema e da literatura entre narrativa e política e narrativa e ética, a autora atenta para o fato de que a crítica à racionalidade ocidental foi contundente na literatura da América Latina de meados do século passado, ressaltando que era pela via da ficção que se procurava abalar os alicerces do pensamento europeu hegemônico. "Creio, então, que o abandono desse caminho, no campo da produção artística latino-americana, em prol de uma adesão pedestre à vida cotidiana, reforça a convicção de que devemos ser realistas, entendendo-se como 'ser realista' aceitar que nada mais resta a fazer para tentar minorar os males que se abatem sobre nossas sociedades, que não existem caminhos alternativos ao capitalismo globalizado tal como se configura na atualidade", pontua ela.

Em entrevista ao MAGAZINE, Vera Follain de Figueiredo discorreu sobre essa pauta, bem como teceu considerações sobre a abordagem ficcional dada no Brasil (no âmbito da literatura e do cinema) à ainda recente e dolorosa égide do regime militar, comparando-a com a aferida em produções similares em países vizinhos, como Chile e Argentina, que também viveram sob ditaduras. A crítica de arte e os lugares contemporâneos dessa crítica também entraram na conversa. Confira, a seguir, alguns trechos.

Você aponta que, nas últimas décadas, houve arrefecimento da crença no poder subversivo da ficção. Assim, a ficção deu lugar a narrativas entremeadas pelo documental ou mesmo por relatos denominados de não ficção. A que fatores se deve a mudança, especificamente na América Latina, marcada, no século 20, pela ficção de aspectos mágicos e narrativas policiais e metaliterárias? Quais são, na sua avaliação, as consequências socioculturais desse “cerceamento do imaginário”? Tal mudança, na América Latina, acompanha a tendência que se acentua, ao longo da segunda metade do século XX, nos centros hegemônicos da cultura ocidental, de crítica às narrativas com princípio, meio e fim, cuja trama se constitui pelo encadeamento causal dos fatos. Em oposição aos fechamentos teleológicos, aos ilusionismos da cultura de mercado, cada vez mais, se valorizou o inacabado, o fragmentário, ou seja, tudo que pareça se contrapor ao “efeito hipnótico” da intriga, frequentemente associado à ficção. O documental com sua abertura para o imprevisto ganhou, então, proeminência.

A crítica à racionalidade ocidental, entretanto, já era contundente na literatura da América Latina de meados do século passado, e era pela ficção que se procurava abalar os alicerces do pensamento europeu hegemônico. Era incorporando as histórias orais, contadas de geração para geração, os mitos, as lendas, misturadas também com os folhetins da cultura de massa, que os escritores buscavam desconstruir os rígidos binarismos da cultura que fora imposta pelo colonizador. A ficção reescrevia a história dos vencidos, rompia barreiras, distendia os limites do possível. Creio, então, que o abandono desse caminho, no campo da produção artística latino-americana, em prol de uma adesão pedestre à vida cotidiana, reforça a convicção tão corrente hoje em dia de que devemos ser realistas, entendendo-se como “ser realista” aceitar que nada mais resta a fazer para tentar minorar os males que se abatem sobre nossas sociedades, que não existem caminhos alternativos ao capitalismo globalizado tal como se configura na atualidade.

O passado traumático das ditaduras latino-americanas é tema recorrente de ficções (literárias e cinematográficas) brasileiras e argentinas. Que aproximações e/ou diferenças você percebe no tratamento ficcional dado à questão nesses dois meios culturais, constantemente examinados em sua obra? Tanto na Argentina quanto no Chile, o número de obras que retomam o passado traumático das ditaduras é significativamente maior do que no Brasil. Naqueles países, o tema é revisitado, com frequência, a partir dos mais diferentes ângulos: visto pelos olhos das crianças vítimas da violência estatal no período de vigência das ditaduras, revisitado pela memória da segunda geração, isto é, pelos filhos já adultos dos militantes contrários ao regime, retomado para apontar o silêncio cúmplice das camadas intermediárias da sociedade ou a não superação até hoje dos sofrimentos causados. Embora narrativas ficcionais brasileiras das duas últimas décadas se dobrem sobre alguns desses temas, como, por exemplo, o romance "Prova Contrária", de Fernando Bonassi, ou o filme "O ano em que meus pais saíram de férias", de Cao Hamburguer, não se pode dizer que essa vertente da ficção tenha a mesma força aqui e nos países latino-americanos citados, que permanecem buscando ajustar as contas com o passado.

Com o recrudescimento das práticas neoliberais, o mundo do trabalho volta a ser narrado no cinema. No caso das produções brasileiras, quais são os principais eixos dessa abordagem? Um de seus ensaios privilegia o filme "Arábia", do mineiro Affonso Uchôa. Por que o filme se destaca neste contexto? O tema do trabalho pontuou o campo cinematográfico brasileiro ao longo do tempo. Na época das greves do ABC (1978-1980), por exemplo, vários cineastas voltaram suas câmeras para o registro documental e ficcional dos embates enfrentados pelos trabalhadores. Privilegiava-se, naquele momento, as manifestações políticas dos operários, o impacto das greves, das lutas coletivas na vida de cada um. No período entre 1980 e final dos anos 1990, assiste-se ao declínio do tema do trabalho, que cede espaço, na ficção, para a encenação da violência de grupos marginalizados. No retorno do tema na última década, entretanto, já não são os movimentos coletivos que ocupam a centralidade nos roteiros. Filmes como "Arábia" (foto abaixo), de Dumans e Uchoa, "Corpo Elétrico", de Marcelo Caetano, ou o documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", de Marcelo Gomes, chamam a atenção para a continuidade da exploração do trabalhador, mas em outra escala, colocando em primeiro plano o indivíduo na sua luta cotidiana pela sobrevivência. "Arábia" nos surpreende, porque é através do ato solitário da escrita, normalmente não associado aos hábitos de um operário, que o personagem adquire consciência da exploração da sua força de trabalho. O filme aborda, assim, a escrita como lugar político.

Um dos capítulos do livro problematiza a crítica de arte e os lugares contemporâneos dessa crítica, não mais restritos aos circuitos modernos. Cita, inclusive, os clubes de leitura como instância, hoje, em que se exercem funções judicativas e seletivas. Há também críticos youtubers e em podcasts. Como essa crítica pulverizada e midiática afeta, hoje, a produção e o consumo das obras culturais? Na verdade, estamos diante da crise, no campo da arte, das instâncias tradicionais de legitimação, pressionadas pelo reinado do senso comum que se instaurou nas redes digitais. No caso da literatura, por exemplo, qualquer leitor pode assumir o papel do crítico como fazem jovens youtubers, anulando-se as hierarquias decorrentes das especializações do saber. Entretanto, se por um lado essa diluição das esferas de competência abala a pretensão de rigor nos critérios de valoração, por outro, não deixa de trazer a atividade crítica para o cotidiano dos seguidores dos booktubers, por exemplo, conferindo-lhe uma certa vitalidade. Atento a essas alterações, o mercado cultural se curva aos likes e ao número de seguidores que o artista, cada vez mais dedicado à promoção das suas próprias obras, arregimenta nas redes: nesse quadro, novos padrões para o estabelecimento dos cânones são incorporados, em consonância com as mudanças provocadas pela cultura digital.

O último capítulo de seu livro é também uma homenagem a Rubem Fonseca, autor cuja obra você investigou no livro “Os crimes do texto” (Editora UFMG). Você assinala que o narrador em primeira pessoa nos romances e contos de Fonseca é uma armadilha, pois é um jogo infinito de simulações. Por que essa é uma importante chave para se compreender a literatura urbana do autor? Os narradores da ficção de Rubem Fonseca, deslizando por referenciais variados de valor, podem ser dedicados cuidadores de idosos, mas também loucos, justiceiros, assassinos profissionais, executivos, corretores de imóveis, detetives ou escritores, dentre outras personalidades possíveis. Sempre sujeitos às contingências, aos encontros fortuitos e passageiros, que a cidade – filha e mãe dos deslocamentos – lhes proporciona, eles nos oferecem uma visão da vida urbana também em contínuo deslocamento, compondo um painel multifacetado da cidade. A enunciação peregrina permite que o escritor desvele as infinitas histórias que a cidade oculta.

Por fim, o título do livro, “Ficção equilibrista” remete-nos à expressão de Aldir Blanc, “esperança equilibrista”. O que espera a ficção do outro lado da linha dessa travessia arriscada? Não é fácil responder a esta pergunta tão inteligente e poética. Também correndo riscos, eu diria que, para a ficção, o mais importante é a travessia em si, não tanto o que a espera no ponto de chegada, que ela sempre poderá adiar. O importante é resistir, enquanto caminha, não permitir que os ventos que sopram contra a liberdade a derrubem, defendendo com unhas e dentes o direito de criar mundos imaginários como alternativa ao que chamam de mundo real.