ALÉM DO LIMITE

Trabalhadores da saúde lideram ranking de afastamentos por saúde mental em MG

Em meio à pressão, precarização e má remuneração, agentes de saúde, técnicos de enfermagem e enfermeiros são 37% dos afastamentos no serviço público desde 2022

 

Um dia, a psiquiatra Ludmila* chegou ao hospital com sacolas repletas de óculos, batons, joias, roupas e outros pertences, e os distribuiu entre colegas de trabalho e pacientes. O que parecia uma boa ação, era, na verdade, um pedido de socorro. Alguns dias depois ela tirou a própria vida. “Até hoje não me perdoo por não ter percebido que aquilo era uma despedida. Isso me marcou muito”, lembra a trabalhadora da saúde Lionete dos Santos Pires. A história ilustra uma triste estatística da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), que traz os profissionais da saúde na liderança do ranking de notificações por problemas de saúde mental relacionados ao trabalho em Minas Gerais. Nos últimos quatro anos, somente no setor público, quatro das cinco categorias com mais adoecimentos por este motivo foram trabalhadores da área, sendo que, juntos, os agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem, enfermeiros e agentes de saúde pública representam 37% de todos os afastamentos.

Lionete, que também é diretora executiva do Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (SindSaúde), lembra que o suicídio da Ludmila, ocorrido há quase duas décadas, foi o que norteou a sua atuação no sindicato em defesa da saúde mental da categoria. “Era uma pessoa maravilhosa, linda. Todo mundo pensou que era só uma boa ação, mas na outra semana, quando cheguei para trabalhar, notei um silêncio no hospital. Quando abri a porta para entrar, um paciente me falou que ela tinha se suicidado. Era um hospital de saúde mental, e ela, que cuidava dos outros, não teve ajuda”, lembra, emocionada, a diretora.

Quando se considera os setores público e privado, os dados da secretaria estadual indicam ainda que, das 2.804 notificações registradas entre os anos de 2022 e 2025, cerca de 13,5% eram técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde ou enfermeiros, que aparecem, respectivamente, como 1ª, 2ª e 6ª profissões mais afetadas pelo problema. Os dados indicam ainda que o ano de 2024 teve o maior número de registros de transtornos mentais catalogados pela SES-MG, com 972 casos em todo o Estado, um aumento de 29,6% em relação ao ano anterior.

Para o superintendente regional do trabalho em Minas Gerais, Carlos Calazans, o dado acende um alerta que indica a necessidade de cuidado a quem oferece a vida para cuidar da nossa população. Para ele, a pandemia acentuou o estresse, ansiedade, tristeza e angústia dos profissionais da saúde. “Esses profissionais saíram da pandemia bem abalados psicologicamente. Teve lugares que, se entravam dez pessoas para internar, seis morriam. E junto com isso perderam colegas também que estavam trabalhando. Então o estresse, a ansiedade, a tristeza e a angústia reinaram nesse ambiente e isso vai ser tipificado logo daqui uns anos”, disse.

Por sua vez, a diretora executiva do SindSaúde, Lionete, argumenta que a pandemia não piorou a situação da categoria, mas escancarou o cenário em que eles já trabalhavam. “No dia a dia, o problema no serviço de saúde começa na portaria e vai até o médico”, garante. “Desde quando eu estudava para ser técnica de enfermagem eu ouvia uma coisa que eu repudio, que é falar que nós, trabalhadores da saúde, somos anjos de branco. Não somos anjos, somos pessoas que têm direito à valorização e respeito. Anjo não fica cansado, não sente raiva, tristeza, tensão”, protesta.

O professor de psicologia Thales Coutinho acredita que uma das justificativas para o alto índice de notificações por problemas de saúde mental relacionados ao trabalho na área de saúde é a alta carga horária, especialmente daqueles que atuam no setor de emergência. Entretanto, ele também vê relação do problema com a pressão diária da luta contra a morte.

“Os índices de burnout, que é o estresse e esgotamento pelo trabalho, são elevados entre médicos e enfermeiros de hospitais. Além da carga horária ser geralmente muito elevada, a tensão envolvida nessa atividade é muito alta. Claro que todos os profissionais têm suas tensões, mas, nas unidades de saúde existe uma linha muito tênue entre a vida e a morte. Essa luta para salvar pacientes o tempo inteiro, causa angústia e estresse, até um ponto em que a resiliência não consegue mais barrar isso e a pessoa adoece”, argumenta.

Pressão, assédio moral e baixa remuneração

Enfermeira há 29 anos na cidade de Barbacena, na região Central de Minas, Bruna* escolheu a profissão “por vocação”. “É uma área muito gratificante, mas, também, muito ‘sacrificante’, pois sacrificamos nossa saúde, tanto física quanto mental”, afirma. Apesar de nunca ter sido afastada do trabalho, ela conta fazer uso contínuo de ansiolítico e antidepressivo. “A gente acompanha muito sofrimento, mas não é só isso. O pior é a pressão, que vem de cima para baixo e, às vezes, até de fora. Isso te desgasta. Já trabalhamos 12h por plantão lidando com o sofrimento humano, e, com essa pressão toda, em um momento a saúde grita por socorro”, desabafa a profissional.

Para Lionete, diretora executiva do SindSaúde, a baixa remuneração também é um fator importante na saúde psicológica dos trabalhadores. “Com exceção dos médicos, a categoria tem um salário base no serviço público de R$ 1.518. Isso é um dado alarmante, pois, sem receber o suficiente, o trabalhador procura uma jornada dupla, e fica cada vez mais desgastado. Se eu me aposentar hoje, com 25 anos de serviço público, a minha média salarial vai ser calculada em cima do salário mínimo. Essa é a realidade da maioria dos trabalhadores”, pontuou.

A técnica de enfermagem Ana*, de 53 anos, conta que o assédio moral de um dos chefes foi um dos gatilhos que acabaram culminando no diagnóstico de transtorno bipolar, que a afastou do trabalho em um grande hospital de Belo Horizonte. “Um dia eu enfrentei esse meu chefe, e foi aí que ele chegou o dedo na minha cara. Foi nessa época que eu sofri o meu primeiro afastamento. Falei que ele não iria fazer comigo o que fazia com todo mundo. Depois, acabei sendo transferida de lá”, lembra a trabalhadora.

Ela também cita a terceirização e a precarização dentro das unidades de saúde como um problema que afeta a saúde mental de seus trabalhadores. “Eu estava há 19 anos no Hospital Maria Amélia Lins (HMAL). No dia 18 de dezembro fui trabalhar e, no dia 20, descobri que agora era funcionária do João XXIII, que bateria cartão lá. Logo em seguida entrei em crise. Estou gastando R$ 1 mil por mês com medicação. Estão desmontando a saúde, para entregar para o setor privado, e estamos assistindo isso e sendo obrigados a ficar calados”, protesta.

Atendimento pelos corredores

Questionadas sobre o que é oferecido para elas cuidarem da saúde mental, as servidoras foram unânimes em dizer que isso só ocorre de forma informal, prática conhecida como “atendimento no corredor”. “Quando o trabalhador da saúde passa mal, ele é atendido pelos colegas, pede uma receita para o médico e, ali, em pé mesmo, ele faz esse atendimento. Isso não é de agora, vem de anos”, garante Lionete.

Quando descobriu o transtorno bipolar, Ana* também encontrou dificuldade para ser atendida. “Tive que arrumar um psiquiatra, pois no Ipsemg é difícil conseguir. Além disso, como a maioria de nós tem dois empregos, a carga horária é muito puxada, sem falar que a maioria são mulheres, que acumulam trabalhos em casa também. Eles até oferecem atendimento psicológico, mas, como a gente costuma falar aqui, os psicólogos estão precisando de mais ajuda que a gente, pois estão nas mesmas condições”, denuncia.

Bruna também relata a mesma dificuldade ao procurar ajuda psicológica no trabalho. “Fiz um atendimento prévio e a psicóloga disse que iriam retornar dentro de quatro a cinco meses. Já faz um ano que estou aguardando e nada ainda. Eu não tive respaldo, não tive acolhimento por parte da Fhemig e, isso mesmo trabalhando no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena”, garante.

A SES-MG e a Fhemig foram procuradas por O TEMPO, e informaram por nota que, desde o início da pandemia, o Estado conta com o programa “Acompanhar”, que é voltado ao acolhimento e acompanhamento psicológico dos trabalhadores da fundação. “A equipe é composta por profissionais de diferentes áreas, como psicologia, fisioterapia e serviço social. Caso haja necessidade de acompanhamento psiquiátrico e suporte medicamentoso, a Gerência de Saúde e Segurança do Trabalhador conta com o encaminhamento para o Instituto Raul Soares, unidade da Fhemig especializada em saúde mental”, disse.

Especificamente sobre o HMAL, a pasta alegou que a maioria dos profissionais foi direcionada ao João XXIII, mas que foi assegurada a possibilidade de movimentação para outras unidades, o que dependia da disponibilidade de vagas e do perfil profissional. Sobre a assistência do Ipsemg, a SES-MG informou que o atendimento de psiquiatria ocorre por meio da Rede Própria, com serviços de urgência e internações oferecidos no Hospital Governador Israel Pinheiro (HGIP), e consultas eletivas no Centro de Especialidades Médicas (CEM), ambos em Belo Horizonte. “A Rede Credenciada do Instituto também garante atendimento psiquiátrico na capital e no interior do Estado, incluindo o município de Barbacena”, concluiu.

*Nomes fictícios