Desafios na saúde, custo de vida e segurança pública são o outro lado da moeda do desenvolvimento econômico trazido pela mineração de lítio nas cidades do Vale do Jequitinhonha. E estão na mira do poder público e da iniciativa privada. O prefeito de Itinga, cidade de onde a CBL e a Sigma já exploram o mineral, projeta que a qualidade de vida dos moradores do município pode melhorar, mas continua aquém das possibilidades prometidas pelo desenvolvimento.
“Com a geração de oportunidades de emprego, certamente vêm pessoas de outros municípios, e temos alguns desafios pela frente. O ônus chega primeiro que o bônus. Fala-se muito em melhoria na arrecadação. Houve, mas os desafios são maiores. Vêm pessoas de fora, o preço dos aluguéis aumenta. A utilização dos espaços públicos também tem aumentado, sobretudo na saúde, que fica sobrecarregada. Eventualmente, há problemas relacionados à segurança pública”, afirma o prefeito da cidade, João Bosco Cordeiro, conhecido como “Bosquinho” (PSD).
A arrecadação de Itinga saltou de cerca de R$ 47 milhões em 2021, antes da chegada oficial da Sigma, para R$ 70,8 milhões em 2024. “A única coisa que eu, na condição de gestor, tenho percebido é uma melhoria na geração de emprego com a vinda das empresas, de 2022 para cá, e melhoria na arrecadação. Em uma comunidade que vivia basicamente de Fundo de Participação dos Municípios (FPM), hoje, conseguimos ver uma melhoria sensível. Em 2023 e 2024, conseguimos perceber o pico de arrecadação do Cfem, mas ainda muito, muito distante do que se apregoou e do que nós mesmos esperávamos com relação à mineração de lítio na nossa região”.
A Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem) é a contrapartida que as mineradoras pagam ao governo pela exploração das terras brasileiras. Entre 2020 e 2024, Itinga recebeu pouco mais de R$ 18,5 milhões dessa verba, mesmo valor de Araçuaí. A cidade que recebeu uma fatia maior do Cfem das mineradoras de lítio é Nazareno, no Campo das Vertentes, que arrecadou R$ 42,8 milhões no período. Em Araçuaí, os cofres municipais recebem um incremento de R$ 7,8 milhões de compensação, conforme dados da Agência Nacional de Mineração (ANM).
“O Congresso Nacional tem que pensar em meios de aumentar essa alíquota para que parte da riqueza fique nos municípios”, prossegue o prefeito. A alíquota do Cfem do lítio – isto é, a taxa paga pelas empresas à União, aos Estados e aos municípios – é de 2%. Já a do minério de ferro é de 3,5%. O prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa de Oliveira (PSD), também se queixa da distribuição dos recursos compensatórios. “Não estão sendo auferidos da forma como a gente entende que podem ser”, disse.
No município, o chefe do Executivo também lamenta a fatia menor destinada a Araçuaí. Isso ocorre porque a extração mineral, em si, ocorre em uma área dentro do território de Itinga. “A dinâmica de pagamento de impostos no Brasil, e principalmente na questão da mineração, pressupõe a informação da própria mineradora, né? A mineradora informa quanto explorou, quanto comercializou e quanto vai pagar de Cfem. As mineradoras que estão em operação colocaram valores muito altos no início dos projetos, que até o momento a gente não teve aferição disso”, reclama o prefeito.
Confira o especial completo sobre a exploração do lítio em Minas Gerais Tadeu Barbosa reclama que os repasses da CFEM não são feitos com regularidade - Foto: Fred Magno/ O Tempo
Desde 2020, o ano com maior arrecadação da taxa no município foi 2023, com R$ 4,03 milhões. Em 2024, a compensação somou R$ 3,7 milhões, segundo a ANM. “Valor que é ínfimo dentro daquilo que se previa. Este ano nós já recebemos cerca de R$ 2 milhões, estamos para receber mais alguma coisa, mas não de forma perene. Isso torna difícil até mesmo um planejamento e uma programação de aplicação desse recurso em uma atividade específica dentro da prefeitura”, pondera Tadeu Barbosa.
A mineração torna-se de fato uma porta para o desenvolvimento se houver contrapartidas das empresas à degradação do território. É o que defende a coordenadora do Polo Jequitinhonha da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria das Dores Pimentel Nogueira, ou Marizinha, que atua há três décadas na região. “A questão da mineração é muito anterior ao lítio. Historicamente, empresas fora da região e com capital internacional tiram, exploram, levam embora o minério e deixam a região destruída, o meio ambiente degradado, gastam a água e não deixam benefício nenhum à população local. Elas deveriam deixar uma contrapartida local e fortalecer a movimentação cultural pelo Vale do Jequitinhonha inteiro, investir em educação e em projetos de direitos femininos”.
Em sintonia com as críticas dos prefeitos, a consultora tributária da Associação dos Municípios Mineradores do Brasil (Amig) Rosiane Seabra crê que, no modelo atual de pagamento, com base apenas nas informações das mineradoras, a Cfem não é capaz de gerar transformação econômica às cidades em que há extração mineral.
“Nesse modelo nós vamos viver como se fosse apenas para pagar conta, subsistência. Então, por enquanto, o lítio não está transformando (o Jequitinhonha), igual o minério de ferro não transformou, por exemplo, Itabira durante quase 50 anos. E não estou falando mal de Itabira, é uma cidade-berço da mineração, mas o que a atividade está deixando de legado com a exaustão das minas?”, questiona.
Seabra cita que há a orientação aos municípios mineradores para que façam acordos de cooperação técnica com a ANM que visem à capacitação sobre os preços praticados pelas mineradoras nas comercializações de minerais. “O que nós estamos orientando a esses municípios é verificar se esse lítio está sendo comercializado no exterior para uma empresa coligada, do mesmo grupo econômico. Porque, se for isso, pode ser que nós tenhamos o mesmo problema que tem no minério de ferro, quando se vende para a própria empresa do grupo, e aí não espelha o preço real da Bolsa e acaba vendendo mais barato”, detalha.
Roseane Seabra destaca que atualmente não há um valor de referência da ANM para a comercialização do lítio, o que leva mais vulnerabilidade aos municípios. “Hoje as negociações deveriam ser baseadas na cotação internacional. Quando a gente pega uma nota fiscal, a gente checa que não é isso que ocorre na prática. E aí a gente vem falando de bônus, vem falando de perda, vem falando de um monte de justificativas, mas aí a gente pega e analisa: quem é o cliente? E descobrimos, em uma análise mais profunda, que o cliente é uma subsidiária do grupo e só depois vende realmente para uma indústria, sabe? Então, é esta triangulação que vem prejudicando a Cfem”, finaliza a consultora da Amig.