CAUTELA

Da biodiversidade às comunidades tradicionais, veja impactos da exploração de lítio no Jequitinhonha

Intensificação da atividade minerária na região desperta a preocupação de ambientalistas e lideranças locais

 
Por Gabriel Rodrigues, Nubya Oliveira e Simon Nascimento
Publicado em 23 de junho de 2025 | 07:46

“Rio largo cheio de peixes”. O significado de “Jequitinhonha”, topônimo de origem indígena, abraça a riqueza da biodiversidade do vale situado no nordeste de Minas Gerais. O termo geográfico também dá nome a um dos 55 municípios da região e a um rio de 70 mil km², considerado Patrimônio Histórico-Cultural do Estado. A divisão territorial – fragmentada em Alto, Médio e Baixo Jequitinhonha – compreende a expressão de três biomas brasileiros: Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga, além de abrigar múltiplas espécies de fauna e flora. No entanto, a abundância ecológica é ameaçada pela exploração do solo do Vale do Jequitinhonha, rico em minerais, como ouro, diamantes, ferro, quartzo e lítio. Este último atraiu ainda mais a atenção da indústria nos últimos anos.

Conforme dados recentes do Serviço Geológico do Brasil (SGB), o Vale do Jequitinhonha é a região com o maior potencial para a exploração de lítio do país, com cerca de 45 depósitos do mineral, concentrando aproximadamente 85% das reservas nacionais desse metal. Porém, pesquisadores apontam que a atividade minerária provoca impactos socioambientais significativos, incluindo a alteração da paisagem por meio de cavas a céu aberto, poluição em função dos desmontes de rochas, desmatamento de áreas verdes, perda de biodiversidade, grande consumo de água e geração de rejeitos. Além disso, interfere nos modos de vida das comunidades tradicionais que vivem nas redondezas.

“A gente tem tratado as consequências do ponto de vista da sociobiodiversidade. Ou seja, o risco que representa para aquele território abrange não somente a fauna, flora, os ecossistemas, mas também a diversidade cultural, os saberes e as manifestações dos povos indígenas e quilombolas. Na realidade, a nossa preocupação envolve a vida de um modo geral, das pessoas, dos animais e da vegetação. São dimensões que não podem ser deixadas de lado,” explica Vanessa da Silva, professora da Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e pesquisadora do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro.

Clebson Souza de Almeida, também professor da UFVJM e pesquisador do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, destaca que a exploração mineral no Vale do Jequitinhonha começou com o ciclo do ouro e depois do diamante, há mais de 300 anos. Porém, desde sempre a população da região teve uma relação muito intrínseca com os meios ecológicos de seu entorno. “O modo de vida está extremamente relacionado com o território. Um pedaço de terra é muito mais que um espaço qualquer para essas comunidades tradicionais, é onde se escrevem as suas histórias e memórias. Não tem dinheiro que pague essa terra sagrada. Isso é difícil de entender para muitas pessoas que estão pensando só no mercado ou que têm outra forma de viver. É um problema irreversível”, analisa.  

Confira o especial completo sobre a exploração do lítio em Minas Gerais

Povos indígenas e quilombolas estão preocupados com a água 

Entre os povos indígenas da região do Jequitinhonha, estão, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os Aranã, Pankararu e Pataxó, além da forte presença de comunidades quilombolas, como Gravatá, Cruzinha, Catitu do Meio, Rosário e Mutuca. “É uma diversidade de povos. Só dos Aranã são mais de 200 famílias espalhadas em vários municípios, como Araçuaí, Itinga e Virgem da Lapa. Os Pataxó e Pankararu também estão distribuídos por várias cidades. Ainda tem os Maxacali, que são itinerantes. Eles vêm, passeiam na região e voltam. No total, são mais de 300 famílias que vivem por aqui,” evidencia Cleonice Maria da Silva, liderança indígena Pankararu. 

A ativista vive na aldeia Cinta Vermelha-Jundiba, no município de Araçuaí. O lugarejo está situado à margem dos rios Jequitinhonha e Araçuaí. “Os rios são importantes para nós, mas as mineradoras estão tirando água de lá para lavar o minério e depois despejando-a no solo, contaminando toda a terra. Eles entram nos territórios e vão demarcando onde tem lítio. Tudo isso nos assusta porque a relação do nosso povo com o meio ambiente é muito forte, mas as nossas terras estão muito vulneráveis. Por isso estamos em luta para regularizá-las junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Nunca fomos procurados pelo poder público ou pelas empresas para um diálogo que seja. A gente fica só no prejuízo, vendo a destruição acontecer”, afirma.

Ribeirão Araçuaí, afluente do rio Jequitinhonha, é um dos mananciais que estão nas proximidades de complexos minerários - Foto: Fred Magno/ O Tempo

O pesquisador Clebson Souza de Almeida chama atenção para a diferença de tratamentos por parte do poder público quando o assunto é a captação de água. “É cruel ver como apoiam e até fomentam a extração de uma quantidade tão grande de água do rio Jequitinhonha para abastecimento da indústria, quando se tem ao lado várias comunidades com dificuldade de acesso ao recurso natural, se valendo de tecnologias sociais de captação da chuva, que são superimportantes, mas construídas pela articulação do semiárido brasileiro. Essas comunidades, há muitos anos, solicitam abastecimento de água digno, o que poderia ser feito pelo rio, mas percebe-se que, para a indústria, a coisa muda. O discurso é transformado, e tudo fica mais fácil”, enfatiza.

Alguns estudos estimam que no processo minerário, para cada tonelada de lítio, são necessários até 2 milhões de litros de água. A respeito desse consumo nos empreendimentos de lavra e mineração do metal, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) não revelou o volume médio gasto pelas empresas, apenas informou que esse indicador varia conforme o arranjo produtivo, tecnologia utilizada, percentual de reúso, etapas de beneficiamento e características do minério. “No processo de licenciamento, é exigida a apresentação de balanço hídrico, detalhando as fontes de água e os volumes necessários por modalidade de uso”, realçou a pasta.

Temor e desalento

Na Comunidade Piauí Poço Dantas, vizinha à área de operação da Sigma, vivem cerca de 65 famílias sob tensão e desalento. A aposentada Maura Ribeiro dos Santos, 56, é uma das que ainda moram por lá. Ela nasceu e foi criada no local e se queixa das explosões feitas diariamente, pela manhã e à noite. “Tirou o nosso sossego”, comenta. Outro problema é com o acúmulo de poeira gerado a partir das detonações e com o barulho da movimentação de caminhões e do descarregamento de restos de rocha do alto de uma colina.

Maura reclama dos estrondos gerados pela operação da Sigma e relata dificuldades para dormir - Foto: Fred Magno/ O Tempo

A casa de uma irmã de Maura, que também vive no vilarejo, está com rachaduras que, segundo ela, foram provocadas pelas detonações. A aposentada diz que, além dos transtornos, também perdeu a privacidade com a circulação de drones. É que os moradores tinham o costume de tomar banho no riacho Piauí, afluente do rio Jequitinhonha. “O rio era a coisa mais preciosa que a gente tinha. Hoje nem conseguimos mais usar essa água”, reclama. 

Na região, o abastecimento de água é feito pela Sigma, que distribuiu caixas-d’água na comunidade. “Eles tentam comprar a gente com migalhas”, completa a aposentada, que garante ter entrado em depressão após a instalação da empresa na divisa entre Itinga e Araçuaí. “Praticamente acabou com a nossa vida aqui, nós não temos mais futuro aqui, não. A empresa foi boa pra região, trouxe muito emprego, mas infelizmente nos prejudicou muito. Tem emprego para os jovens, mas, para os de idade, não tem. Se não for aposentado, vai passar até necessidade”, sintetiza. 

“Hoje o que queremos é um acordo para sair daqui, porque não temos condição mais de ficar aqui. Se eu tivesse condições, eu não estaria mais aqui”, disse. Procurada, a Sigma afirma que a operação é desenvolvida em torno de uma planta greentech, com tecnologia brasileira. A empresa argumenta que a planta reutiliza 100% da água, sem uso de químicos nocivos e sem geração de barragem de rejeitos.  “A água captada para a planta tem qualidade de esgoto e é tratada dentro do complexo industrial, que a consome em pouquíssima quantidade – equivalentes a menos de 15 vezes a utilização de um bananal, típico da região”, diz a empresa.

Espécie de arara é presença frequente nas casas de moradores no Poço Dantas, em meio às operações da Sigma - Foto: Fred Magno/ O Tempo

Ainda conforme a mineradora, 1.500 pessoas foram empregadas diretamente, sendo que 85% dos colaboradores são do Jequitinhonha. “Através de bem-sucedidos programas de inclusão social produtiva, a empresa beneficiou 21 mil pessoas, via microcrédito para as mulheres e irrigação para lavoura familiar. Através do programa Fome Zero, a empresa financia mais de 3 milhões de refeições por ano; via o Água para Todos, forneceu água potável para mais de 18 mil pessoas na região”, completa.

Impactos também ao bolso das famílias: aluguel mais alto e inflação 

Do ponto de vista dos reflexos econômicos, o bispo da arquidiocese de Araçuaí, Dom Geraldo, diz que “a cidade  – que é a maior da região, com cerca de 34 mil habitantes  –  tem sofrido um aumento muito grande da sua população e uma exploração forte do valor de aluguel”. Cleonice sente o peso no bolso porque tem um filho que estuda na cidade. “A gente não consegue mais pagar o aluguel, porque o que antes era R$ 300 agora passou para R$ 1.500. Então, para nós, é um impacto na nossa economia. Fora que o custo de vida aumentou demais nos supermercados, porque, como chegou muita gente de fora para trabalhar na região, os preços dos produtos subiram bastante”, relata.

Gabriel Vieira Colares é proprietário de uma imobiliária em Araçuaí, mas com imóveis em outras cidades da região. Ele calcula que o preço do aluguel chegou a subir 150%. “E isso porque existe uma baixa oferta de imóveis e uma demanda muito alta. As mineradoras alugavam diretamente com os proprietários dos imóveis e faziam ofertas altas”, diz o dono da Rede Max Imóveis. Apesar da elevação dos preços, ele considera que a expansão da cadeia é positiva para a região. 

“As mineradoras trouxeram muitos benefícios para a cidade em relação ao que era. Todo mundo espera muito mais. Isso aí é fato. Falar que eu estou satisfeito assim é muito relevante e variável. Melhorou em muitos pontos, mas ainda tem muito para poder melhorar”, acrescenta Colares.