DOIS LADOS

Feam afirma que empreendimentos darão ‘compensações’ para comunidades afetadas

Governo diz que empresas que atuam na região do Jequitinhonha adotaram a agenda ESG; para especialistas, medidas são insuficientes

 
Por Gabriel Rodrigues, Nubya Oliveira e Simon Nascimento
Publicado em 23 de junho de 2025 | 06:00

A Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) afirma que os empreendimentos de mineração de lítio em Minas Gerais devem seguir os mesmos procedimentos de outros licenciamentos ambientais no Estado. A licença é regida pela Deliberação Normativa Copam 217, de 6 de dezembro de 2017. O artigo 27 da resolução prevê que, em caso de concessão, as mineradoras devem adotar medidas para evitar, minimizar ou compensar os impactos negativos da atividade. 

O governo também diz que as empresas que atuam na região adotaram a agenda ESG. “A CBL realiza monitoramento constante da água na região, desde o início das suas operações, em 1991, sendo que 90% da água utilizada é recirculada. A Sigma, cujo lítio é reconhecido como ‘lítio verde’, também não faz uso de água potável em seu processo produtivo, sendo o recurso recirculado”, frisa. No entanto, conforme a pesquisadora Vanessa da Silva, do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, na prática, essas ações são insuficientes. 

“As mineradoras que se instalam na região têm obrigação de executar projetos de reparação nos territórios. Mas essas iniciativas nem sempre vão dar conta daquilo que efetivamente se tinha de biodiversidade, por exemplo. Na verdade, o que acontece é que, quando fazem reflorestamento do lugar ou recomposição da paisagem, que é brutalmente alterada, as companhias acabam utilizando isso para engrandecer a sua própria imagem, como se estivessem de fato preocupadas com a sustentabilidade e com a população, quando, na realidade, estão fazendo o que a legislação as obriga. E, mesmo assim, isso é muito aquém em relação aos impactos efetivos que essas empresas vão produzir na região”. 

O bispo da Diocese de Araçuaí, dom Geraldo dos Reis Maia, frisa que as mineradoras utilizam-se de “falsos encantos” para convencer a população do progresso. “As empresas chegam com aquele canto de sereia, anunciando isso, prometendo aquilo, enquanto vão realizando a atividade minerária. Mas sabemos que o retorno social é muito pequeno em relação aos recursos extraídos. Eu costumo dizer que retiram a riqueza e ficam os buracos. Por isso, nós temos trabalhado muito no sentido da responsabilidade social das companhias. Elas têm uma obrigação diante dos impactos que provocam na região. É preciso, então, haver maior investimento no campo da saúde, do transporte, da moradia, entre outros”.

O líder religioso ainda fala sobre o papel da Igreja neste cenário. “Muitas pessoas pensam que somos contrários ao avanço. Não. Todos nós precisamos de desenvolvimento econômico. Sabemos que hoje não é possível fugir da mineração. Não somos inocentes em relação a isso. A nossa questão está na responsabilização ecológica e socioambiental das empresas. Tenho recebido lideranças de mineradoras fazendo ofertas e apresentando as suas vantagens. Mas temos procurado estar junto do povo, orientar aquilo que precisa ser orientado e denunciar o que precisa ser denunciado, sempre atento à realidade desafiante que estamos vivendo. Aqui é um vale muito bonito, de gente resistente, simples e com grandes valores culturais. Então, nos sentimos impulsionados a assumir essa luta desse povo, que muitas vezes não tem voz nem vez”, ressalta. 

Confira o especial completo sobre a exploração do lítio em Minas Gerais

O professor da UFVJM Clebson Souza de Almeida faz uma ressalva quanto às promessas de geração de empregos, usadas pelas companhias para atrair a atenção dos municípios e da população. “Os trabalhos que estão criando são para garantir o funcionamento delas, a fim de conquistar os seus lucros. Não é política pública, não é compensação”, diz. O pesquisador ainda destaca a situação de outras cidades do Estado que têm a mineração como carro-chefe, mas que continuam em dificuldades: “A arrecadação de impostos, que aparentemente é muito interessante para esses municípios, não volta como qualidade de vida para as pessoas, porque o que deveria se converter em políticas públicas e em acesso a direitos realmente não se efetiva na prática”. 

Desafio das mineradoras é tornar a atividade mais verde e sustentável - Foto: Fred Magno/ O Tempo

Negócio verde e sustentável: empresas investem em ESG e visam diminuir impactos  

Tornar a atividade mais verde e sustentável. Esse é um discurso que vem crescendo no setor minerário, que vem fazendo esforços e se respaldando em um modelo de negócio baseado em práticas ESG – Environmental, Social, and Governance (Ambiental, Social e Governança, traduzido do inglês). As empresas visam reduzir impactos ambientais e promover responsabilidade social. Para isso, têm investido em tecnologias para diminuir emissões de CO², reutilizar água, usar energia limpa e reduzir resíduos, por exemplo. Mas como a mineração, por definição, extrai recursos naturais não renováveis, seria possível se pensar em uma atividade que atenda às necessidades do presente sem comprometer as demandas das futuras gerações? 

“Na perspectiva do capitalismo, não existe a possibilidade de uma mineração sustentável. Porque os objetivos deles estão pautados no lucro, em Bolsa de Valores, em especulação de mercado e na discussão da hegemonia política dos países que estão fazendo uma corrida por minerais críticos. Então, envolve muita coisa que foge ao controle. É o mercado que manda, que domina. Até na própria formulação que o capitalismo fez do conceito de desenvolvimento sustentável, não dá para se enquadrar. A exploração minerária não é ecologicamente correta, ambientalmente equilibrada, socialmente justa, tampouco culturalmente aceita”, sublinha o pesquisador do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, Clebson Souza. 

Para a pesquisadora Vanessa da Silva, a própria ideia dessa produção verde – por mais que aparentemente seja um processo menos agressivo – nasceu da crise gerada pelo próprio capitalismo. “A gente tem ouvido falar muito nos últimos anos de crise ambiental e ecológica. Mas quando isso entra de fato como preocupação? Quando ameaça o desenvolvimento do capital. E aí o que o capitalista faz? Converte essa crise que ele mesmo criou numa forma de obter mais lucro. Mas como é que você fala de sustentabilidade se está tratando de um bem finito, que é o caso do lítio, por exemplo? Sustentável como, se não está levando em consideração a relação das comunidades tradicionais com o seu território?” indaga. 

Descumprimento da Convenção 169 da OIT 

Por fim, a pesquisadora diz que a falta de diálogo com as comunidades indígenas e quilombolas infringe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê que os povos tradicionais deverão ter direito a escolher suas prioridades em seu processo de desenvolvimento e de participar da formulação e da avaliação dos planos que possam afetá-los. “A resolução fala da consulta livre, prévia e informada a essa população, muito na perspectiva de assegurar-lhes alguns de seus direitos. Mas esse tratado não tem sido respeitado nos processos de licenciamento do lítio”, evidencia. 

Em razão disso, há no Ministério Público Federal (MPF) um inquérito público aberto para apurar eventuais violações de direitos étnicos, raciais e territoriais dos povos tradicionais da região do Vale do Jequitinhonha, em decorrência da mineração do lítio. Para o órgão, a convenção tem força constitucional no Brasil, e, caso não tenha sido executada, há a possibilidade de nulidade de todo o processo já deferido pelos órgãos ambientais.