Uma vida dedicada ao Mineirão. José da Silva França Sobrinho, de 85 anos, mais conhecido como Zé França, era visto pelos corredores do estádio desde a inauguração, em 5 de setembro de 1965. Funcionário aposentado do Gigante da Pampulha, ele seguiu assíduo por lá e ajudou a perpetuar a história do futebol mineiro com relíquias pelas quais zelou há décadas.
Como frisa o próprio, França começou a trabalhar no Mineirão quando o estádio sequer existia. Ele chegou em 1961, no início das obras de construção. "Era praticamente só mato. A fundação estava mais ou menos, não tinha nem os tubulões completos ainda. Havia uns 30 funcionários."
Após dois meses no almoxarifado, o funcionário passou para o setor de recursos humanos, ainda no período de obras. Com a inauguração do estádio, foi gerente operacional por 45 anos, sendo o responsável pelo acesso dos torcedores. Ele é quem somava os números das catracas para o locutor anunciar o público pagante.
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Em meio às tarefas que tinha sob sua responsabilidade, França arrumava tempo para outra, cuja ideia veio junto ao jornalista Ronan Ramos. "Falei: 'Ronan, temos que dar um jeito para aqueles que vierem daqui a 50 anos verem como o trabalho foi feito."
Com passagens por diversos veículos de comunicação em Minas, como rádios Itatiaia e Guarani e TV's Itacolomi e Manchete, Ronan tinha uma preocupação fundamental para qualquer repórter esportivo: angariar dados históricos dos jogos que iria cobrir.
O jornalista viu a chance de compilar esse material ao atuar como relações-públicas do Mineirão, no início da década de 1980, quando o Gigante da Pampulha era administrado pela Ademg (Administração dos Estádios de Minas Gerais), empresa do Governo de Minas então presidida por Afonso Celso Raso.
"Quando o Afonso me chamou para trabalhar no Mineirão, a primeira coisa que falei com ele é que essa era uma dificuldade de todo repórter", conta Ronan. A Ademg, então, fez uma parceria com o Centro Universitário Newton Paiva e convidou estudantes do curso de Relações Públicas a coletar, por meio de jornais, informações das partidas disputadas no estádio desde a inauguração.
"Reuni esses alunos, e ficamos meses pesquisando. Eles copiavam os dados à mão. Levamos esse material para o Mineirão, onde fomos (ele e França) datilografando e passando para a cartolina", recorda o jornalista.
Com o material retroativo passado a limpo, França deu sequência ao trabalho até 6 de junho de 2010, quando Atlético e Ceará disputaram o último embate antes de o estádio ser fechado para as obras da Copa do Mundo de 2014.
França não tinha tempo de assistir às partidas por completo. Enquanto a bola rolava, ele ficava à frente de uma calculadora Facit — que ocupava muito mais espaço dos que as atuais — somando o número de espectadores que passaram pelas roletas. Seus aliados eram os locutores que trabalhavam dando informações no alto-falante do Mineirão.
A eles era entregue uma planilha a ser preenchida com dados dos confrontos, como escalações, nome do árbitro, motivo do jogo etc.
"Eles anotavam tudo o que acontecia na partida e me entregavam no mesmo dia ou jogavam debaixo da porta da minha sala. No dia seguinte, eu pegava a máquina de escrever e passava para a cartolina", explica.
França e Ronan passaram para o papel os 3.386 jogos disputados na era antiga do estádio. As relíquias, que trazem informações dos menores duelos aos mais importantes das histórias de Atlético e Cruzeiro, estão guardadas no Gigante da Pampulha.
"Todas estão preservadas. E também tem as pastas de todos os times que jogaram aqui. Está tudo no arquivo", diz o funcionário aposentado, que também dedicou parte de seu trabalho ao Museu Brasileiro do Futebol, dentro do Mineirão, com cópias das fichas espalhadas pelas paredes. "Essa sala é meu orgulho", alegra-se.
Outra raridade exposta no museu e que Zé França mostra com entusiasmo é uma das catracas originais do Mineirão. O equipamento ficava no portão nove e ainda tem o selo de "patrimônio da Ademg".
A tinta azul em parte desbotada e com pontos de ferrugem sinaliza a marca de um tempo em que a catraca era totalmente mecânica. "Havia um funcionário pegando o ingresso e outro girando ela", relata França, que, mesmo com a chegada das mais modernas, não abandonou as antigas.
"Em 2000 vieram as catracas eletrônicas, mas eu não tirei as minhas, porque sou um pouco possessivo. Os torcedores passavam nelas primeiro. E muitas vezes os tesoureiros dos clubes perguntavam 'quantos passaram na sua catraca?' Eu ia conferir e estava mais ou menos igual, com diferença de um, dois ingressos".
As catracas mecânicas deixaram o Mineirão na reforma mais recente do estádio, reinaugurado em janeiro de 2013 para o Mundial. Mesmo com a chegada da Minas Arena, empresa privada que substitui a Ademg, França seguiu no Gigante da Pampulha, mas com uma rotina bem menos intensa do que antes.
"Trabalhei 45 anos ininterruptos. Pegava serviço no domingo às seis da manhã, com 40 pessoas limpando o estádio para a partida, e parava ao meio-dia para almoçar. Recomeçava uma da tarde, já para o jogo, e terminava às sete da noite. A partir de março de 1980, eu ainda ia ao Mineirinho trabalhar nos shows. Chegava em casa três da madrugada. Trabalhei sábado, domingo, feriado, dia santo...".
Mas todo esse esforço não parece ter sido um peso para ele. "O Mineirão é minha vida, não tem coisa melhor para mim", declara-se França. (Reeditada por O TEMPO Sports em setembro de 2025)