O que fez Eugênio Fiúza Queiroz e Paulo Antônio Silva, “sósias” do Maníaco da Anchieta, serem detidos injustamente como supostos estupradores e por lá permanecerem por tanto tempo foi uma conjunção de equívocos. Entretanto, tudo começou com o reconhecimento feito por vítimas, que os apontaram como seus abusadores. O erro é relativamente comum não só no Brasil. Levantamento do  Innocence Project nos Estados Unidos mostra que o reconhecimento equivocado é a explicação para 69% das condenações erradas que tiveram que ser revertidas após realização de exame de DNA. Esta é mais uma reportagem da série O custo da injustiça, de O TEMPO

 

Advogada e diretora do Innocence Project Brasil, Dora Cavalcanti explica que, apesar de não terem feito o mesmo levantamento por aqui, pela prática, já é possível afirmar que o cenário se repete. “Eu passei um ano na Califórnia antes de montarmos o projeto aqui no Brasil. E posso afirmar que, por mais que os sistemas de Justiça sejam diferentes, muitos fatores se repetem. A falha da memória das testemunhas e das vítimas e a problemática dos reconhecimentos equivocados são situações comuns”, afirma. 

 

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro mapeou que lá o erro de reconhecimento é recorrente. Entre 2019 e 2020, o órgão conseguiu identificar 58 casos de reconhecimento fotográfico que culminaram em acusações e até mesmo prisões injustas no Estado. Mesmo que encarcerados indevidamente, a pesquisa mostrou que o tempo médio na prisão foi de nove meses e sete dias. O prazo mais longo identificado foi de três anos e 21 dias.  O levantamento identificou ainda um grande impacto do racismo estrutural neste problema, já que 70% dos acusados injustamente eram negros. 

 

O defensor público Wilson Hallak explica que este não é um problema exclusivo do Rio de Janeiro, já que ele próprio já presenciou uma injustiça em pleno Fórum de Belo Horizonte, o maior e mais bem equipado de Minas Gerais. “Acontece dessa forma aqui na capital mineira, pelo menos eu posso assegurar. Já tive um caso de uma pessoa presa que foi levada para lá, eu entrevistei pessoalmente e ele negou os fatos. Foi levado para reconhecimento, a vítima o reconheceu sem sombra de dúvidas e, logo em seguida, a gente teve que pedir desculpas porque soubemos que aquele acusado tinha sido levado por engano”, conta. 

 

Previsto no Código do Processo Penal, o reconhecimento precisa seguir uma série de regras. O delegado Emerson Morais, titular da Delegacia de Homicídios de Contagem, detalha como o procedimento deveria acontecer. “Colocam-se os indivíduos numa sala, cada um com uma numeração, e pessoas com compleições físicas idênticas e um pouco distantes do nosso suspeito. A testemunha ou vítima fica em outra sala, atrás de um espelho, de modo que os investigados não consigam vê-la. Ali, a pessoa aponta o indivíduo com determinada placa. É feito um termo, registrado no cartório da delegacia. Em seguida é feita uma troca de pessoas e de placas. Então a testemunha ou vítima é novamente convidada a fazer o reconhecimento, e o suspeito aparece com outra placa. Isso deveria ser feito duas ou três vezes”, detalha. 

 

O delegado explica, no entanto, que, mesmo se todos os requisitos forem seguidos, o fator psicológico não pode ser ignorado. “No caso do homicídio, no momento da perda, familiares, parentes e amigos são tomados pela emoção e pela paixão. Já tivemos casos em que os familiares foram categóricos em apontar um indivíduo como autor do homicídio e foram além, dizendo: ‘Ele estava lá, nós o vimos lá. Ele deu fuga para o outro’. Então tínhamos o suspeito de ter cometido o homicídio com provas subjetivas, que eram os relatos dos parentes e amigos. Mas, na investigação de segmento, descobrimos que a pessoa apontada no calor da emoção nem sequer estava na cidade. Ela estava no interior de Minas Gerais. A gente conseguiu comprovar (o álibi) através de pedágios e de testemunhas dele que ele não tinha nada a ver com o homicídio”, exemplifica. 

 

Juiz da Vara de Execuções Penais de São João Del-Rei, no Campo das Vertentes, Ernane Neves acredita que as regras do reconhecimento deveriam ser seguidas. “Mas, em delegacias do interior, é difícil arrumar pessoas com características semelhantes. O reconhecimento não é prova absoluta, é um indício. O fato de parecer com a pessoa não significa que é ele o autor. Tem que apurar outras circunstâncias”, argumenta o magistrado.

 

Reação

 

A descoberta de vários erros envolvendo identificações equivocadas motivou a formação de um grupo de trabalho destinado à realização de estudos e à elaboração de propostas para novas diretrizes de reconhecimento pessoal em processos criminais no Conselho Nacional de Justiça, em agosto de 2021. Em relatório publicado no ano passado, o grupo explica que “as evidências científicas também têm destacado que não há qualquer relação entre grau de confiança, riqueza de detalhes e intensidade de emoções expressas pela vítima ou testemunha e a fidedignidade de suas declarações ao evento ocorrido”. “Isso porque a construção das ‘falsas memórias’ não é um processo voluntário e informado por má-fé e, sendo assim, a vítima ou testemunha acredita sinceramente que a ‘falsa memória’ corresponde ao fato vivido, sendo capaz de expressá-lo inclusive de modo pormenorizado”, relata. 

 

Além disso, o grupo concluiu que algumas circunstâncias podem induzir a um falso reconhecimento e fogem do controle da Justiça. Alguns exemplos citados foram as condições de iluminação do local onde o crime ocorreu, se o criminoso usava algo que escondesse características físicas, como uma touca ninja, a distância entre reconhecedor e autor do delito, o tempo de duração do crime e o tempo decorrido entre o fato criminoso e o ato de reconhecimento, além do nível de estresse psicológico sofrido pela vítima em razão do trauma provocado pelo crime e do uso de arma de fogo.   

 

Com base nos estudos realizados nas comarcas de todo o país, o comitê fez algumas recomendações técnicas para reduzir os riscos de falhas nos julgamentos. Uma delas é que o reconhecimento fotográfico seja usado “com extrema cautela, considerando que se trata de um fator catalisador da prisão de inocentes, com impactos desproporcionais para a população negra”. Ou seja, o recurso, na visão do CNJ, deve ser utilizado “como meio de prova apenas admissível quando realizado em conformidade com as evidências científicas”.

 

Os Cinco do Central Park: um dos maiores erros da Justiça dos EUA

 

Injustiças podem acontecer em várias partes do mundo. Nos Estados Unidos, um dos casos mais emblemáticos ficou conhecido como “Os Cinco do Central Park”, depois que cinco adolescentes negros e latinos acabaram presos pelo estupro de uma mulher branca ocorrido em 1989 no famoso parque de Nova York. 

 

O caso, que inspirou a série recente “Olhos que Condenam”, da Netflix, terminou com os garotos condenados por estupro e agressão com base em confissões obtidas durante interrogatórios policiais. Porém, após serem detidos, eles foram entrevistados sem qualquer suporte de advogados ou acompanhamento de familiares, tendo confessado os crimes sob pressão policial. 

 

A verdade veio à tona em 2001, quando novas evidências surgiram e os cinco jovens foram inocentados no ano seguinte. Isso só foi possível após um estuprador em série confessar o crime e seu DNA ser comparado com as amostras colhidas na época do estupro. Depois de anos de luta, os homens que passaram de seis a 13 anos detidos, apesar de ainda serem menores na época do crime, conseguiram firmar um acordo histórico, recebendo uma indenização de US$ 41 milhões.