Durante muito tempo, o que era para ser um momento de diversão na chácara de Luiz Gonzaga, de 74 anos, virava motivo de tensão. Nos dias de festa, com a casa cheia, a fossa no quintal não dava conta do recado. “Quando você está com aquele pessoal todo, olha para a fossa e fala: ‘Nu, estou perdido’. Seu psicológico já fica abalado”, brinca o aposentado, morador da Comunidade dos Lopes, na zona rural de Divinópolis, no Centro-Oeste de Minas.
A experiência de Luiz Gonzaga revela um problema que se espalha pelo país inteiro. Todo dia, quase 33 milhões de litros de esgoto são gerados no Brasil. De acordo o Sistema Nacional de Informações de Saneamento (Sinisa), 37,6% do esgoto produzido não recebe nenhum tipo de tratamento e é descartado na natureza. Nas áreas rurais, a situação é ainda mais grave: 90% da população não tem rede de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil.
Se o saneamento básico não chega, é preciso pensar em alternativas para preservar a qualidade das águas. Para o especialista em engenharia sanitária e ambiental Hebert Gontijo, essa é uma preocupação urgente, que está diretamente relacionada com as mudanças climáticas. “Muitos pensam que é só sobre o aumento da temperatura. Mas como a poluição que estamos gerando agora nos rios e nos lençóis freáticos vai nos impactar? Porque, a cada dia que passa, a quantidade de esgoto lançado neles aumenta, e isso vai ter um reflexo na natureza”, ressalta.
A cidade de Luiz Gonzaga é um exemplo dessa realidade nacional. Embora 83% do esgoto de Divinópolis seja coletado, só 14% recebe tratamento. E, em 44 comunidades rurais, não existe nenhum serviço de saneamento sequer. Segundo a Copasa, responsável pela coleta e pelo abastecimento, condições como distância e poucos moradores, além de limitações técnicas, dificultam a oferta de sistemas convencionais nessas localidades. Por meio de nota, a concessionária explica que, por esses motivos, não há previsão de implantação de rede coletora de esgoto.
O biólogo Gustavo, da Uemg, ajudou a levar a fossa verde para a Comunidade dos Lopes - Foto: Fred Magno/O TEMPO
Diante dessas restrições na zona rural, captar e tratar resíduos acaba exigindo mais criatividade. E essa foi a ferramenta que Luiz Gonzaga usou para vencer o desafio da falta de coleta de esgoto em sua chácara. Ele substituiu a fossa tradicional, com uma abertura no chão, por uma fossa verde, que conta com bananeiras para filtrar o esgoto.
A solução veio com a ajuda técnica da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg) e virou exemplo que já está pronto para se espalhar pela comunidade. Também conhecida como “Tvap”, a solução ecológica funciona assim: primeiro, um buraco é cavado na terra e é impermeabilizado para evitar vazamentos. Dentro dele, são colocados pneus e entulhos, criando uma estrutura que ajuda a filtrar a água, que chega por meio de uma tubulação.
Em seguida, uma camada de brita, areia e um pouco da terra escavada é usada para cobrir tudo. E, por cima, são plantadas bananeiras. Mas como essas plantas tratam o esgoto? “As raízes se alimentam da matéria orgânica, e a planta transpira essa água de volta para o meio ambiente”, explica Hebert Gontijo, que também é professor da Uemg.
Além de prevenir a contaminação dos lençóis freáticos, a tecnologia traz outros benefícios para o meio ambiente. “É uma tecnologia simples e de fácil manutenção, que utiliza como matéria-prima aquilo que danifica o meio ambiente, como entulhos de construção civil e também os pneus que ficam ali parados”, detalha Gontijo.
Também conhecida como “Tvap”, a solução ecológica usa a bananeira para filtrar o esgoto - Foto: Fred Magno/O TEMPO
A construção da fossa verde deu segurança para Luiz Gonzaga. “Agora, mesmo quando tem muita gente na casa, ela não enche. Melhorou até a higiene, porque não tem cheiro, fica tudo abafado”, relata. Além da tranquilidade, o aposentado ainda colhe frutos das bananeiras. “São muito saborosos, qualquer um pode comer sem preconceito”. E de fato pode. Segundo Gontijo, o consumo é seguro. “Os patógenos que estão no esgoto não passam para as bananas. Essa tecnologia foi validada pela Emater e faz parte de todo o processo”, explica o engenheiro ambiental.
Para Luiz, o benefício do Tvap vai além da sua chácara e alcança a todos. “A gente já sabe que o lençol freático está contaminado, mas agora, com a fossa verde, diminuímos essa poluição. Cada um que fizer uma dessa estará fazendo a sua parte, e eu me sinto tranquilo em poder fazer a minha”, orgulha-se.
Um estudo realizado por um grupo de alunos da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg) investigou a qualidade da água consumida pela população que utilizava os poços em Divinópolis. E os resultados não foram animadores. “Encontramos 42% de contaminação por coliforme total, ou pela bactéria E. coli. E esse dado nos assustou”, revela o biólogo Gustavo Fonseca, da universidade estadual. “A é um grupo de bactérias que estão presentes no trato gastrointestinal, principalmente dos mamíferos. Esse dado nos leva a inferir que essa água está contaminada por fezes, sejam fezes humanas ou de animais”, completa.
A carência de abastecimento foi um dos principais motivos da escolha da Comunidade dos Lopes para receber o projeto dos Engenheiros Sem Fronteiras. Além da tecnologia de tratamento de esgoto em comunidades isoladas, o programa também levou o clorador do Emater para tratar a água.
No ano passado, quase 164 mil brasileiros foram parar no hospital por doenças de transmissão feco-oral, associadas ao uso de água contaminada. Mais de 5.000 pessoas não resistiram à enfermidade. Os dados são do Instituto Trata Brasil. “Não existe saúde sem saneamento básico adequado”, afirma o infectologista Geraldo Cunha Cury.
“O saneamento básico faz primeiro o tratamento das águas que as pessoas vão consumir e deveria também fazer o tratamento do esgoto que elas produzem. A relação é íntima: uma coisa não existe sem a outra”, esclarece o especialista da Universidade Federal de Minas Gerais.