Promessa

Acervo de Socorro tem imagem de Nossa Senhora das Dores com cabelo de devota

A peça sacra conta com cabelo doado pela irmã da aposentada Antônia das Graças, de 70 anos; gesto é tradição entre católicos mais antigos

Por Rayllan Oliveira e Vitor Fórneas
Publicado em 31 de março de 2024 | 06:00
 
 
 
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A escultura de Nossa Senhora das Dores – uma representação de Maria, a mãe de Jesus, durante os momentos da Paixão de Cristo – é uma das peças sacras que fazem parte do acervo e está armazenada na sala aos fundos do santuário de São João Batista, em Barão de Cocais. A imagem foi confeccionada com cabelo humano, doado pela irmã da aposentada Antônia das Graças, de 70 anos, e é um dos objetos religiosos que podem ser transferidos para o museu da Vale, em Mariana, após o acordo assinado em agosto de 2023.

“Minha mãe fez a promessa de doar parte do cabelo da minha irmã se ela fosse curada da asma. A minha irmã, quando era novinha, sofria muito com a doença, e a gente tinha a sensação de que ela iria morrer. Até que um dia mamãe rezou, fez a promessa, e ela nunca mais teve crise”, conta. A irmã de Antônia nasceu na comunidade de Socorro, onde morreu em janeiro de 2011 – oito anos antes de o distrito ser evacuado.

Cabelo doado pela irmã da aposentada Antônia das Graças, de 70 anos, é utilizado na imagem de Nossa Senhora das Dores. Foto: Arquivo Pessoal


Segundo a aposentada, desde que precisou sair da sua casa (no distrito) para se mudar para Barão de Cocais, não foi possível mais ver a imagem. “Aqui (em Barão de Cocais) é até difícil ir à igreja. É longe, tem que subir o morro ou gastar dinheiro com carro. Lá no Socorro, a gente podia ir à igreja todos os dias”, lamenta.

As lembranças da peça sacra e do pequeno distrito se revelam logo na entrada da casa da idosa. O espaço foi alugado pela Vale, como determinado no processo de indenização. Na estante, disposta na sala, fotos da comunidade ornam com artigos religiosos da santa de devoção e com os retratos da família. Símbolos que, para Antônia, servem para preservar a memória de mais de sete décadas e manter viva a esperança de um dia poder retornar à rotina religiosa.

“O que a gente tem hoje são as imagens; não tem que levar elas embora, não. Tem é que arrumar uma sala e colocá-las para, todas as vezes que a gente for à igreja, poder ver, até o dia que a gente voltar para Socorro”, defende.

Tradição por graças e milagres

A doação dos cabelos da irmã de Antônia é uma tradição comum entre católicos, principalmente entre os mais antigos. O gesto simboliza o pagamento de uma promessa por uma graça ou milagre alcançado. O cabelo humano era reservado por um tempo pelo fiel e em seguida cortado para ser ajustado à cabeça dos santos.

A tradição é mais comum entre imagens barrocas – estilo artístico que surgiu no século XVI e se estendeu até meados do século XVIII, comum em igrejas no interior mineiro.

Para o pesquisador Jonathan Félix, a devoção da família de Antônia precisa ser preservada pela Arquidiocese de Mariana e pela Vale. Ele acredita que afastar dos familiares da aposentada a imagem que possui o cabelo da irmã pode comprometer a religiosidade do grupo, que também é um símbolo do distrito de Socorro. 

“São peças que contêm itens até mesmo de ancestrais. Limitar o contato com esses símbolos pode alterar e extinguir a cultura e enfraquecer a união do grupo, causando, inclusive, problemas de saúde e comprometendo o bem-estar da comunidade”, alerta.

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