Comunidade de Socorro

Católicos na mira da lama temem perder imagens de devoção para a Vale

Peças sacras da comunidade de Socorro, que foi evacuada por causa do risco de rompimento de uma barragem da Vale, podem ser levadas para o museu da mineradora após acordo assinado em agosto de 2023

Por Rayllan Oliveira e Vitor Fórneas
Publicado em 31 de março de 2024 | 06:00
 
 
 
normal

Em frente à imagem de Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro, a cozinheira Aparecida de Paula Oliveira, de 43 anos, faz aquela que pode ser uma das suas últimas preces perante a escultura que representa a sua santa de devoção. A imagem, símbolo da comunidade de Socorro – um dos primeiros povoados de Minas Gerais, que precisou ser evacuado no dia 8 fevereiro de 2019 por causa do risco de rompimento da barragem Sul Superior da mina Gongo Soco, da Vale – pode estar de mudança para o museu da mineradora, localizado na cidade de Mariana, a cerca de 73 km do distrito. Uma possibilidade aventada a partir de um acordo feito pela Arquidiocese de Mariana e a Vale em agosto de 2023. O Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais e a Defensoria Pública do Estado também participaram da resolução.

 

“Tirar ela da gente vai ser um processo muito doloroso. É como se estivessem passando um punhal em nosso coração”, desabafa, emocionada, a cozinheira. Aparecida nasceu e viveu na comunidade de Socorro, onde também criou seus quatro filhos. No distrito, que tem mais de 300 anos, ela dividia a rotina entre os compromissos domésticos, no restaurante onde trabalhava e na igreja, que leva o mesmo nome da padroeira. “Muitos podem falar que é só uma imagem, mas é o que ainda resta do Socorro. Já nos tiraram quase tudo, sobrou só a nossa fé. Por isso a gente quer a imagem perto de nós”, expõe. 

 

O acordo, assinado no último ano, prevê o pagamento de indenizações, ofertas de serviços essenciais, além da preservação de bens culturais da comunidade de Socorro. Entre as determinações, está o pagamento de R$ 12 milhões para a restauração da igreja Mãe Augusta do Socorro, e o repasse de R$ 4,4 milhões para o acervo religioso. De acordo com os ministérios públicos Federal e do Estado, o investimento nas peças sacras deve ser feito pela Vale. A mineradora deve ainda restaurar a igreja, obra que não tem previsão para ser concluída. 

 

Os moradores temem que, durante este tempo, marcado, segundo eles, por indefinições, as imagens sejam levadas para o museu da mineradora, na cidade de Mariana. A Vale, responsável pelo acautelamento dos bens culturais, afirma que seguirá o determinado pela Arquidiocese de Mariana, que preferiu não se manifestar sobre o tema. “Fizeram tudo sem perguntar à comunidade. Não vamos deixar que isso aconteça, as imagens são nossas”, garante a auxiliar administrativa Élida Couto, de 37 anos.

 

O acervo

 

Enquanto não há uma definição sobre o começo das obras de restauração da igreja da comunidade de Socorro – já que, segundo a Vale, não é possível realizar atividades presenciais por motivo de segurança –, a imagem de Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro permanece no Santuário de São João Batista, em Barão de Cocais, local para onde foi levada em 2019. A cidade fica na região Central de Minas Gerais.

 

A escultura, que tradicionalmente ficava exposta em um dos altares da igreja, foi colocada em uma sala para que o templo pudesse receber a decoração para as missas em comemoração da Semana Santa. Segundo o pároco do local, o padre Ronaldo Gomes Chaves, após a celebração da Páscoa, no dia 31 de março, ela retornará ao altar, onde estava acessível aos fiéis. “Ela não está indo para Mariana, retiramos só por uma semana”, afirma.

 

Feita de madeira e com mais de um metro de comprimento, a imagem divide o espaço de uma sala estreita, tomada por prateleiras, com outras peças sacras que pertencem à igreja do distrito de Socorro. São esculturas, retábulos e alfaias litúrgicas mantidas envoltas em panos brancos e com placas de identificação individuais. Conforme estabelecido pela empresa contratada pela arquidiocese e pela Vale para a preservação do acervo, a sala é climatizada. A organização religiosa e a mineradora não informaram para O TEMPO a relação dos bens armazenados.

 

Do milagre à promessa 

 

“Enquanto eu ainda tiver vida, tenho que brigar pela nossa volta para Socorro. Só quando eu vir a imagem no altar, é que ela (a santa) pode me levar para a vida eterna”, declara o aposentado Adil Gonçalves Gomides, de 61 anos. O compromisso se dá pela devoção dele à Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro, padroeira do distrito onde o aposentado morou com os pais e os nove irmãos. A promessa, segundo Adil, é também uma forma de agradecimento ao que é visto por ele como um milagre intermediado pela santa em 2002. 

 

“Estava na área de uma transportadora de madeiras e, quando fui ajudar no serviço de uma rede de esgoto, acabei soterrado. Olhei para cima e vi a lama e o barro descendo. Nos primeiros cinco minutos, só consegui pensar na morte”, lembra. Conforme o devoto, enquanto estava preso na vala, ele escutou um dos funcionários da empresa gritar por socorro. “Naquele momento lembrei de Mãe Augusta, pedi para ela me proteger. Na mesma hora tive a sensação de que ela me cobriu com seu manto, e me senti seguro até eles conseguirem me tirar com um trator”, conta. 

 

O aposentado Adil Gonçalves Gomides, de 61 anos, é devoto de Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro. Foto: Flávio Tavares / O Tempo
 

Devido ao acidente, o aposentado teve que se afastar do trabalho durante oito anos. Ele fraturou a coluna e tinha dificuldades para andar. No entanto, após a recuperação, passou a dedicar sua rotina à festa de Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro, uma tradição de mais de 300 anos, celebrada em agosto. “Depois desse milagre, toda festa da santa ajudo a organizar. É um compromisso que tenho. Quando era no Socorro, era também uma oportunidade de reunir todo mundo. A gente jogava bingo, partilhava, era um momento de muita diversão e de fé”, descreve.  

 

A tradição se tornou para o aposentado uma data de emoção. Isso, porque, no hino, entoado em devoção à Mãe Augusta do Socorro, os versos narram “o milagre” vivenciado por ele. “Nos escombros de um deslizamento, soterrado, alguém ficou ali na frente. Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro salvou teu filho por amor tão de repente”, narra a canção. O aposentado teme que a tradição se perca com a mudança da comunidade para Barão de Cocais, após o distrito ser evacuado pelo risco de rompimento da barragem da Vale. 

 

Ele avalia que o acordo, assinado em agosto de 2023 e que indica a possibilidade de transferência das imagens para o museu da mineradora, em Mariana, pode encerrar essa tradição, o que, para ele, representaria o fim da comunidade. “É muito triste ver uma mãe ou um filho fora de uma casa, e é esse o nosso sentimento. Temos fé que ela vai ficar aqui (em Barão de Cocais) e que, em breve, vamos poder retomar com ela”, finaliza. 

 

Cultura em risco 

 

O pesquisador e doutor em ciências da religião pela PUC Minas Jonathan Félix avalia que o acordo assinado entre a Vale e a Arquidiocese de Mariana precisa ser executado de forma a preservar os bens materiais e imateriais, respeitando as tradições da comunidade de Socorro, afetada pelo risco de rompimento da barragem. “A Vale, que levou a essa situação, precisa atuar de forma assertiva na reparação de todas as perdas, sejam elas materiais ou culturais. Já a arquidiocese precisa atuar como guardiã dessas imagens que fazem parte da identidade desse grupo”, aponta.

 

Segundo o especialista, a religião, por meio de seus rituais e símbolos, integra a formação cultural de um povo. Ele explica que restringir o acesso dos moradores de Socorro a essas imagens pode ocasionar perdas, inclusive na forma de relacionar desse grupo. A recomendação do especialista é a mesma da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais. Por meio de nota, a pasta afirmou ser importante “garantir o acesso da população de Socorro a esses bens, tendo em vista a relevância do acervo para a preservação da identidade e dos laços sociais dessa comunidade”.

 

A pasta se colocou disponível, por meio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha), para intermediar uma possível reunião com as instituições, “a fim de preservar a tradição religiosa local por meio do acesso aos bens culturais e de devoção”. 

 

O acordo 

 

Passados seis meses do acordo e cinco anos da evacuação da cidade devido ao risco do rompimento da barragem da Vale, a mineradora afirma que as obras de restauração da igreja de Mãe Augusta do Socorro ainda não começaram. A empresa diz ainda não ter uma previsão de quando ela deverá ser concluída. Não há estimativa de quando os moradores poderão retornar ao distrito.

 

“A empresa está realizando inspeções remotas, com uso de drones, para avaliar a situação do imóvel e possibilitar a elaboração dos laudos e eventuais projetos de conservação. Neste momento, não é possível a realização de atividades presenciais, uma vez que a zona de autossalvamento da barragem Sul Superior está evacuada preventivamente por motivo de segurança”, afirmou a Vale.

 

Os ministérios públicos Federal e do Estado garantem que suas equipes técnicas acompanham o andamento dos trabalhos. “Em breve, apresentaremos os resultados já concluídos e o andamento das demais ações previstas no acordo”. Sobre a possibilidade de as imagens serem transferidas para a cidade de Mariana, onde ficariam armazenadas no museu da Vale, os órgãos reforçaram somente a obrigação da empresa de custear “as despesas com acautelamento dos bens culturais até que a igreja de Socorro esteja preparada para recebê-los”.

 

Tanto o MPF como o MPMG não informaram se a transferência das imagens está prevista no acordo ou se poderia configurar alguma irregularidade. O posicionamento foi semelhante ao da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), que comunicou que a Vale executou os repasses previstos em fevereiro, conforme determinado no documento assinado.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!