Mesmo sem reivindicar o status de peça decorativa, a estufa é um item que conquistou seu espaço no balcão afetivo dos donos de botecos. E não é muito difícil adivinhar o motivo: entre os vidros, com a temperatura adequada, repousam as bandejas de petiscos que fidelizam frequentadores e os fazem voltar afoitos para o esperado reencontro com os alvos de sua predileção.
Sim, com as inovações tecnológicas dos últimos anos, houve quem colocasse a estufa no escanteio em meio a cardápios digitais e interativos e a fotos instagramáveis para apresentar o menu nos estabelecimentos. Mas a funcionalidade sempre fala mais alto, e eis que o utilitário volta ao front de muitos estabelecimentos descolados. Caso, por exemplo, do Querida Jacinta.
O local coloca a estufa como uma espécie de prolongamento do seu cardápio, principalmente quando vem a saideira da comida. “É mais fácil para retirar os salgados, atender o público e desafogar a cozinha”, explica o chef Daniel Tassi, que recheia o aparato com iguarias como coxinha de pernil e coxa creme – uma coxa de galinha empanada inteira e recheada de creme de queijo. Para promover a estufa, o que está lá dentro custa R$ 12, um preço menor do que qualquer outro item no menu fixo.
Vitrines como a do Jacinta, de fato, estão se multiplicando na capital e fazendo parte de novos estabelecimentos. “A estufa é a nova pochete, tá todo mundo usando. Seja grande ou pequena”, brinca Tassi.
E, de fato, procede. No Do Ar, a estufa também é uma novidade que foi incrementada com o chef Kiki Ferrari, responsável pelo novo cardápio. O local é cativo para os chamados “salgadões” da casa, como o Onofre, um bolinho de arroz recheado de estrogonofe de frango com milho, empanado na batata palha, e o Harumato, pastel primavera de vegetais com agridoce de groselha. “A pessoa vê e dá aquela fome na hora. Instiga, de alguma forma, e é mais fácil de vender”, acredita o chef.
A herança vem dos autênticos botecos que circundam o centro da cidade e, mesmo estacionado no tempo e resistindo aos modismos, é um instrumento ainda longe de esgotar suas possibilidades em Belo Horizonte. “Vejo que muitos desses novos lugares enxergam a estufa como um elemento de praticidade e até mesmo de economia (no caso, de funcionários)”, exemplifica. “Os botecos estão indo para um processo de investir em insumos mais baratos, para a valorização da praticidade na gastronomia e de comer algo que já está ali, pronto para ser degustado”, analisa.
Olho no olho. Por outro lado, a estufa é uma tradução simples e direta da cozinha daquele estabelecimento. Assim como quem contempla vitrines de lojas e se sente estimulado a comprar aquela roupa, a estufa estabelece conexão com o cliente. “O grande lance da estufa é você namorá-la. Primeiro, a gente come com os olhos: você fica olhando, decidindo o que você vai escolher e contemplando a vitrine como a quadros de arte, sabe?”, brinca Nenel Neto, apaixonado confesso por uma estufa e autor do perfil no Instagram Baixa Gastronomia.
Mesmo com cerca de 20 opções de petiscos quentes e frios, o Rei da Estufa, aberto há pouco mais de um mês no Mercado Novo, ainda fisga os desavisados. “Tem gente que escora no balcão e pergunta o que tem pra comer. Existem pessoas que nunca viram uma estufa, mas é legal porque elas olham para baixo, veem a vitrine e se surpreendem”, disse o chef e sócio Alexandre Louzeiro que preza, em seu aparato, por petiscos de vários lugares do mundo. “Mas é simples. Não adianta colocar ‘ragu’ sendo que é carne”, acredita.
Variedades como salsicha, dobradinha, moela, almôndega e pé de porco são as vedetes acomodadas em vitrines como a do Bola Bar, situado no Padre Eustáquio desde que foi aberto, em 1980. Um dos mais tradicionais e simples botecos da cidade ostenta uma estufa de dois andares – há quem garanta que é a maior de BH – com mais de 15 variedades de petiscos cozidos e molhadinhos. E é justificável. “Por isso as comidas de estufa são, em sua maioria, imersas em molho, para que não ressequem. São comidas mais simples e práticas para serem mantidas quente”, explica Kiki Ferrari.
Vedetes. Apesar dessas iguarias clássicas, os petiscos que ocupam as vitrines também caminham com a identidade do estabelecimento. Caso da Dona Tomoko, lugar nos moldes isakaya – nome dado a pequenos estabelecimentos japoneses, equivalentes aos nossos botequins, e com petiscos.
Preparados por Maki Sangawa, a maioria dos petiscos fritos – como o tonkatsu, lombo de porco empanado, e o karage, frango frito japonês marinado com gengibre – é acomodada no vidro do pequeno estabelecimento. “A estufa, em termos de logística, é ótima para servir de forma mais rápida. Em termos de qualidade, perde-se um pouco, mas ganha-se no charme, pela nostalgia”, explica ele, no início da fala, referindo-se ao ressecamento, inevitável.
Para driblar, Sangawa usa um truque comum entre os “estufeiros”: colocar um pequeno recipiente com água e deixar uma gretinha do vidro aberto. “Temperatura e ressecamento são forças opostas”, brinca.
Caso de amor à primeira vista
Nenel explica que o aparato não é só bonito aos olhos, mas também um parceiro de pequenos estabelecimentos que não possuem estrutura para grandes preparos feitos na hora. Geralmente, é o próprio dono que cozinha, deixa tudo na vitrine para abrir o bar, ficar no caixa e servir, no tipo “tudo ao mesmo tempo agora”.
“É importante ter alguém ali, atrás do balcão, para ir regando aos poucos os petiscos no molho em alguns momentos, para não endurecer”, observa Nenel. “E precisa estar em uma temperatura correta para servir. Nada de dar o truque e tirar o petisco da estufa e esquentar no micro-ondas”, alerta.
Outra preocupação é com a honestidade da comida da estufa. Para o chef Alexandre Louzeiro, do Rei da Estufa, a comida exposta ali não pode ser cara. “É um serviço que não é compatível com garçom. O papo é reto. São pratos que não serão finalizados na hora de servir ou que não passaram por grandes tipos de cocção”, defende ele, que serve petiscos como salsichão, jiló cozido, batatinha em conserva, caponata de beringela e almôndega – chamada lá de Bola de Touro, servida com molho de tomate, farofa e queijo maçaricado. Tudo se mantém quente em uma temperatura controlada de 70°C e, claro, regando com molho de tempos em tempos.
Nenel valoriza o resgate do clássico aparato nos novos estabelecimentos, mas faz um alerta. “Tem que ter estufa a preço de estufa. Tem que homenageá-la de coração. Lá, a comida é popular”, finaliza.