“Temos que subir no topo de uma montanha e vender Minas Gerais, gritar a todos sobre a nossa gastronomia”. É com esta frase que o chef Eduardo Maya, fundador do Comida di Buteco e idealizador do festival gastronômico Aproxima, pretende se lembrar de Maria Lucia Clementino Nunes, a Dona Lucinha. A cozinheira, dona de uma importante rede de restaurantes em Belo Horizonte e São Paulo, faleceu aos 86 anos, na manhã desta terça-feira (9), em sua casa na capital mineira.
Pilar da preservação da tradição da culinária setecentista de Minas Gerais, Dona Lucinha é aclamada como uma mulher à frente de seu tempo e como o maior ícone da gastronomia mineira. "Ela sempre foi muito tradicional e trouxe poesia para a nossa culinária, sempre fiel às origens, à terra", declara o chef Flávio Trombino, à frente do também restaurante mineiro Xapuri, quando perguntado sobre a admiração que nutre por Dona Lucinha.
Nascida em 21 de novembro de 1932, a cozinheira viveu sua infância em uma fazenda no Serro, um dos grandes polos gastronômicos do Estado, reconhecido internacionalmente pelo modo artesanal de produção de um queijo tão respeitado. Na adolescência, ela veio para a Belo Horizonte e se destacou em festivais culinários no Brasil e no exterior.
Para muitos, o trunfo da cozinheira partia sempre da valorização do "ser mineiro", das raízes, do cheiro do frango com quiabo e o angu sobre a mesa. "Dona Lucinha valorizou como ninguém a gastronomia mineira e, ao longo de toda sua caminhada, realmente se tornou uma embaixadora da nossa gastronomia", declarou o chef Ivo Faria, à frente do Vecchio Sogno.
A mineiridade de Dona Lucinha partia do estímulo às raízes, à comida feita com afeto. "Na década de 50, Nelson Rodrigues já descrevia que nós tínhamos uma síndrome, um complexo de vira-lata. A Dona Lucinha veio nos ensinar o contrário, nos ensinou a ter paixão pelo que é nosso", afirmou o chef Flávio Trombino.
Aliás, o laço familiar fundado entre panelas é uma profunda marca que unia o chef Flávio a Dona Lucinha. Ele, que recebeu de sua mãe, a cozinheira Nelsa Trombino, o bastão do comando do Xapuri, compartilha com a família Nunes, da rede de restaurantes, o caderno de receitas escrito por matriarcas. "Nós tínhamos uma grande proximidade. Promovemos encontros entre as duas famílias, a família Nunes e a família Trombino, alguma vezes fomos jantar no Dona Lucinha e outras vezes eles vieram jantar no Xapuri. Até hoje temos uma ligação".
Um carinho muito fraterno também ligava o Chef Eduardo Maya à cozinheira. "Estive com ela diversas vezes e ela tinha um carinho muito especial por mim. Hoje vai ter torresmo no céu, festa com canjiquinha e festa com tudo que nós temos de melhor em nossa gastronomia", declarou emocionado.
Resíduo
Em "Resíduo", Carlos Drummond de Andrade se debruça sobre o que resta quando algo parte, para ele "de tudo fica um pouco". A sensação de saudade e o sentimento de um legado que permanece mesmo após a morte é comum entre os chefs ouvidos pela reportagem.
"A Dona Lucina é a maior cozinheira que temos em matéria de gastronomia mineira, não só pelo que ela fez, mas por tudo que ela escreveu, pesquisou e o mais importante, por tudo que ela dividiu com as pessoas. Ela foi, é e sempre será a nossa grande influência na gastronomia", afirmou o chef Eduardo Maya. Para ele, Dona Lucinha foi uma mulher muito moderna, uma grande empreendedora capaz de projetar internacionalmente a comida feita em Minas Gerais.
O mesmo é compartilhado pelo chef Flávio Trombino. "Ela deixou um legado profundo, essa vivência que ela passou para as filhas e para seus pares sempre permanecerá. Ela sempre foi uma pessoa muito generosa", relembrou.
Não é incerta a definição de que a Dona Lucinha fará falta. "É uma pessoa que já está deixando saudades", comentou Maya.