ALESUND, NORUEGA*. Pouca gente sabe, mas o bacalhau, esse clássico das ceias brasileiras e, principalmente, presente nas mesas, é bem diferente do que se come na Noruega, país que abastece o mundo — e principalmente o Brasil — com o famoso peixe salgado e seco. São de 15 a 20 mil toneladas por ano, de acordo com o Conselho Norueguês de Pesca no Brasil. O TEMPO foi até a cidade de Alesund, conhecida como a capital mundial do bacalhau, na Noruega, onde se concentra o maior número de fábricas, para entender de perto como essa tradição funciona. Tudo é muito mais complexo do que parece quando o peixe chega à nossa mesa, geralmente com bastante azeite e batatas por aqui.
A primeira surpresa: bacalhau, sim, é um peixe — e não um preparo ou técnica, como muitos pensam. Ele tem cabeça, nada vivo pelos fiordes gelados da Noruega e é consumido fresco no país com uma frequência que a gente nem imagina. “Na Noruega, o consumo do bacalhau é constante, especialmente durante a quaresma e em semanas comuns. O que a gente costuma encontrar no Brasil, especialmente nas épocas festivas, é uma espécie nobre: por aqui, o do tipo salgado e seco tem pouca saída”, explica Randi Bolstad, diretora do Conselho Norueguês da Pesca no Brasil.
A espécie mais tradicional é o Gadus morhua, também conhecido como bacalhau do Atlântico. Só em 2024, a exportação total da Noruega de Gadus morhua salgado e seco foi de 25.536 toneladas. Ao longo dos anos, outras espécies também passaram a ser tratadas com o mesmo método de salga e secagem, o que contribuiu para a confusão entre peixe e processo. No Brasil, quatro espécies são comercializadas com o nome bacalhau — Saithe, Ling, Zarbo e Gadus morhua — mas o verdadeiro é o Gadus morhua.
Esse processo, conhecido como cura, exige precisão. O mestre responsável pela secagem conhece cada detalhe — desde o tamanho de cada peça até o tempo exato que ela deve permanecer. Os maiores são os preferidos.
No porto de Alesund, cidade onde conhecemos uma rotina que mistura tradição e tecnologia, tudo se aproveita. As ovas se transformam em diferentes produtos, como o caviar vendido ao supermercado e comido como opção de café da manhã. O fígado do bacalhau, rico em nutrientes e voltado para o consumo de colágeno e proteína, e os ossos são processados para extraírem mais proteínas.
Tem cabeça e língua
Nada é desperdiçado. A cabeça, por exemplo, é separada antes do processo de cura — não é salgada junto ao corpo — mas tem destinos valiosos. “Dela são retiradas as bochechas e as línguas, iguarias muito apreciadas aqui na Noruega. Até há projetos em andamento para usar o sangue do peixe como suplemento alimentar”, diz Randi.
O bacalhau salgado passa por um ritual quase artesanal: os peixes são espalmados com a carne para cima em tonéis, onde recebem banhos de sal. Ficam ali por cerca de três meses, absorvendo o tempero e desidratando naturalmente. Essa abordagem integrada reflete o compromisso da Noruega com um modelo de pesca que respeita o oceano, a espécie e o consumidor. “Estamos falando de uma pesca selvagem, onde o peixe cresce livremente no mar, respeitando seu ciclo de vida natural.”
Ao todo, cerca de 34 milhões de refeições são servidas diariamente em mais de 140 países com bacalhau norueguês. Os noruegueses preservam o peixe com cuidado — o excedente é devolvido ao mar, tudo pensado para reduzir o impacto ambiental.
Aliás, a sustentabilidade é um ponto-chave da pesca do bacalhau, que também é rigorosamente regulamentada: pequenos pescadores podem pescar até 600 kg. Ultrapassando isso, precisam entrar no sistema de cotas nacional.
No fim das contas, o bacalhau que chega ao Brasil passou por um processamento cuidadoso, onde cada etapa importa: desde a pesca regulamentada até o espalmamento cuidadoso, a salga prolongada e a secagem que dá forma, textura e sabor ao peixe que a gente tanto aprecia.
Prazer, Gadus morhua
Muita gente pensa que bacalhau é um tipo de preparo, mas, como esclarece Randi, ele é antes de tudo um peixe. "O bacalhau é um peixe de verdade. O nome é da espécie mais tradicional: Gadus morhua. Ele foi o primeiro a ser curado com sal, dando origem ao que hoje chamamos genericamente de bacalhau", explica.
A pequena cidade de Alesund, na Noruega, é considerada a capital mundial do bacalhau. É ali que toda a mágica acontece. "O peixe precisa ser pescado por barcos noruegueses, tratado por pescadores noruegueses e entregue nessa cidade. Lá, ele é salgado, seco e curado com um cuidado que passa de geração em geração", conta Randi com orgulho.
O Brasil é, historicamente, um dos maiores apreciadores do bacalhau norueguês. "O brasileiro gosta do lombo grosso, do sabor intenso, do peixe bem salgado e curado. Por isso, o melhor produto vai sempre para o Brasil", revela Randi.
E quando o bacalhau norueguês chega à mesa, seu diferencial é evidente. "Ele é muito branco, tem uma textura que se desmancha em lascas e um sabor delicado, mas marcante. É um produto que combina com qualquer ingrediente, muito versátil e extremamente saudável."
Como dessalgar o bacalhau com precisão
Bacalhau desfiado:
Deixe de molho por 6 horas, trocando a água a cada 3 horas.
Postas:
Dessalgue por 24 horas para cada centímetro de altura, considerando a parte mais grossa da posta. Troque a água a cada 6 a 8 horas.
Lombos muito grossos:
Deixe de molho por até 72 horas, trocando a água a cada 8 horas.
*A repórter viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca.