Na edição deste ano do Comida di Buteco, que acontece até o dia 11 de maio, bares de Belo Horizonte resgatam a tradição e conquistam o público com criatividade e autenticidade. Apostando em miúdos e cortes considerados menos nobres, como fígado de galinha e bochecha de porco, os estabelecimentos mergulham nas próprias raízes para transformar ingredientes simples em protagonistas de receitas cheias de sabor. Em meio às muitas frituras concorrentes neste ano, o aproveitamento do animal por inteiro parece ser a bola da vez entre os 125 bares participantes, distribuídos pelas nove regiões da capital mineira.

O tradicional Xico da Kafua, endereço com mais de 40 anos de história, estreia com entusiasmo nesta edição do concurso. O chef e proprietário Ednardi Torres viu na competição uma oportunidade de dar nova vida às noites da casa. “A ideia é usar a força do público do festival para movimentar o restaurante à noite, com uma cara nova e novos públicos”, explica. Assim, o chef apostou em uma releitura ousada e afetiva de um clássico da casa: a mãozinha suína. O prato traz o corte cozido lentamente por 12 horas em baixa temperatura, resultando em uma carne suculenta que se desfaz na boca. 

A proteína é acompanhada por uma farofa crocante de soja com farinha de biju, um resgate de sabores tradicionais que muitas vezes são considerados descartáveis. “Queríamos algo que já era aprovado pelo nosso público, que mantivesse a alma do boteco. Muita gente torce o nariz, mas quem tem coragem de experimentar entende o diferencial”, afirma Ednardi. 

Xico da Kafua: Ednardi Torres criou o petisco "Pé na Areia", feito com mão e pé de porco para concorrer ao Comida di Buteco. Foto: Flávio Tavares/divulgação

 

Também pela primeira vez no Comida di Buteco, o bar Parada do Sabor, comandado há três décadas pelo chef e sócio Evandro Gonçalves da Silva, chega ao concurso com orgulho ao recuperar ingredientes que antes ficavam esquecidos. Conhecido como um bar pequeno e tradicional, o Parada do Sabor conseguiu um espaço maior neste ano, o que possibilitou a entrada no festival. “Tenho o bar há 30 anos, mas só agora conseguimos um espaço que comportasse o movimento. É um público novo, variado, de várias regiões. Queria inovar e chamar atenção com algo diferente”, conta Evandro.

A grande aposta do chef é um prato inusitado e cheio de memória de família: coração de boi recheado com bacon, linguiça e cenoura – uma receita inspirada pela sogra e adaptada após muitos testes até chegar ao ponto ideal. “É um prato ousado. Lembra um pouco a textura da língua de boi, mas o coração é ainda menos gorduroso”, explica. Para acompanhar, ele criou um molho à base de alho, leite, óleo e o próprio caldo do cozimento da carne, que realça o sabor único do corte. “Eu queria mesmo chamar atenção de quem nunca comeu o coração de boi”, disse. E deu certo.

Parada do Sabor: coração de boi recheado com: bacon, linguiça, cenoura. Acompanha farofa, batata bolinha assada e molho glace. Foto:  Isaque Rodrigues/divulgação

 

A tradicional língua bovina ganhou protagonismo no Comida di Buteco em muitos bares e também pelas mãos do chef Fábio, do bar Azougue, que estreia na disputa com uma receita carregada de memória afetiva e sabor. O chef Fábio Torquetti homenageia sua avó Elvira. “Ela fazia a melhor língua que eu já comi na vida”, relembra. Antes utilizada como ingrediente em croquetes do restaurante, a língua agora é apresentada de forma autêntica e sem disfarces, celebrando suas qualidades gastronômicas.

Para destacar o sabor único do corte, o chef desenvolveu uma técnica que combina tradição e sofisticação com a brasa. A língua é defumada lentamente por duas a três horas em uma churrasqueira especial. Em seguida, é finalizada com um generoso molho de cerveja, que realça a maciez da carne e acrescenta profundidade ao prato. “É uma carne de segunda com gosto de primeira”, acredita.

Azougue: língua de boi assada sobre creme de batata e milho com vinagrete mineiro e redução do caldo da própria língua com cerveja. Foto:  Isaque Rodrigues/divulgação

Inspiração internacional

Participante da primeira edição do Comida di Buteco, Adriano Braga, do tradicional Amarelim do Prado, retorna agora com um prato que homenageia as raízes da cozinha da roça, misturando sabores locais e internacionais. A estrela da vez é a bochecha de porco, uma carne suculenta e pouco explorada, servida sobre uma cama de angu mole, mandioca, agrião e pesto de horta. Para completar, o prato vem acompanhado de pão com patê de fígado de galinha, inspirado no clássico francês “pâté de campagne”. “É um risco, mas é também um desafio de originalidade”, diz o chef, que queria oferecer uma experiência fora do comum.


Ele ainda conta que a inspiração surgiu da bochecha de porco que experimentou em Portugal, tradicionalmente servida com purê de batata. O chef adaptou a receita à mineiridade do prato da roça e substituiu o purê pelo angu, “muito mais saboroso”. O molho remete aos ensopados lusos e africanos, e o pesto leva queijo de minas ralado e xerém, unindo referências da Itália ao sabor local.

“Quis romper fronteiras e trazer ingredientes que a maioria não conhece. Achei que iria sobrar, mas as pessoas estão se permitindo ter essa experiência”, afirma. Segundo ele, cortes como fígado de galinha e bochecha de porco são acessíveis e deliciosos e, acima de tudo, merecem destaque.

Amarelim do Prado: bochecha de porco na cama de angu mole, pesto de horta, mandioca e agrião. Acompanha pão e patê de fígado de galinha. Foto:  Isaque Rodrigues/divulgação