É algo inevitável: se um mineiro disser que vai visitar alguém de fora do Estado, receberá um pedido de encomenda: “Traz um queijo pra mim, por favor?”. Em alguns casos, fica até implícito, o anfitrião já espera que a iguaria será despachada na bagagem. O queijo produzido no Estado não vive só de fama, longe disso: aqui se tem alguns dos melhores do mundo.
Não é à toa. Em 2024, os Modos de Fazer o Queijo Minas Artesanal foram reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial pela Unesco. De acordo com a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, o Estado conta com cerca de 9.000 produtores de Queijo Minas Artesanal (QMA). A produção anual do QMA atinge cerca de 40 mil toneladas, com uma renda gerada que ultrapassa os R$ 2 bilhões por ano.
Carlos Donizete, 61, é um deles. O produtor rural “das antigas”, como se define, disse que é na região da Canastra que se produz o melhor Queijo Minas Artesanal. “Ô moço, deixa eu te contar um trem: aqui, nessa região, ‘ocê’ vai encontrar os ‘mió’”, revelou, num mineirês típico.
Ouvindo um aqui e outro ali, entre um cafezinho e uma mordida numa lasca de queijo, a reportagem de O TEMPO foi desvendando as histórias e, principalmente, o modo de fazer o Queijo Minas Artesanal em São Roque de Minas, que fica aos pés da serra da Canastra, um dos mais belos cartões-postais do Estado. Vale dizer que as cidades produtoras de queijo da Canastra são, além de São Roque de Minas, os municípios de Medeiros, Vargem Bonita, Tapiraí, Delfinópolis, Bambuí e Piumhi.
“Queijo Minas Artesanal é, pra nós, família: nossa história, nossa cultura, é paixão, é vida, é tudo. A gente vive o queijo, do queijo e com o queijo. A gente trabalha em prol do queijo, que é muito bom para região e para o Estado”, contou, orgulhoso, o produtor Ivair José de Oliveira, 54, dono do selo Queijo do Ivair, um dos queijos mais premiados e valorizados da região.
Tradição familiar
Em todas quatro as propriedades visitadas pela reportagem, uma coisa é comum: a produção do QMA é familiar. Da produção à administração do negócio, sempre terá um membro da família à frente. Maria Cristina Costa, 51, nos recebeu na porta de sua queijaria e reiterou o modo de administração do negócio. “Meu avô paterno, seu Domingos, já produzia, ensinou meu pai, seu Santos, e ele me ensinou. Hoje dou continuidade, juntamente com meus filhos”. Cristina, como é mais conhecida, contou que se sente realizada pelo ofício herdado e que tem prazer em produzir os queijos. “Acordamos antes do amanhecer, juntamos os bichos no curral e fazemos a ordenha”, disse.
Já Ivair José contou que o negócio está na quinta geração de produtores de queijo e que tudo começou com os antepassados em Portugal, na Europa. “A minha família, que tem origem portuguesa, já produzia os queijos na ilha dos Açores”, lembrou.
Guilherme Ferreira, 38, da fazenda Capim Canastra, disse que herdou do seu pai a paixão pelo queijo. Ele, que é do interior de São Paulo, passa a maior parte do tempo na fazenda em Minas e tem a produção do queijo como um modo de viver. “Queijo é a forma que me permite estar em um estilo de vida que me remunera”.
Já Carlos Donizete, o Carlão, lembrou ainda que é do “tempo antigo”, “tirador de leite raiz”, e que a produção do queijo sempre foi de maneira artesanal, praticamente para o consumo da família. “A gente produzia e produz para o consumo da família e para as visitas”, disse, lembrando ainda a forma como o mineiro costuma receber as pessoas em suas casas.
Da terra, do ar e da água
Não é consenso, mas o sabor característico do Queijo Minas Artesanal e, em especial, o do produzido na serra da Canastra, pode ter relação com o tipo de alimentação que o rebanho tem. Muitos produtores afirmaram que a ingestão do capim-gordura influencia diretamente a composição do leite, que, por sua vez, interfere no sabor, no aroma e na textura do queijo produzido.
“Nesta região, já teve muitas áreas de pastagem com capim-gordura. Os animais só comiam isso, e o leite, sim, era mais encorpado”, lembrou Carlos Donizete. Ivair José contestou e disse que isso é coisa do passado. “Hoje a maior parte do capim é o mombaça e com piquetes rotacionados.
Os capins antigos, como o gordura, não existem mais”, contou Ivair José. Na época de seca, os produtores usam silagem para alimentar o rebanho. Quando seca tudo, os animais não têm o que comer. Daí os produtores usam silagem de milho e, às vezes, feno.
É certo que a combinação entre o que o rebanho come, a água utilizada, o clima e as condições em que os queijos são produzidos e maturados influenciam diretamente o sabor, a textura e o aroma, definido como “terroir” do queijo, característico de cada região produtora do alimento. O termo é usado também para outros produtos, como vinho e café – “terroir” vem do francês e significa “terra” ou “solo nativo”.
O modo de fazer o queijo exige apoio
Uma lei sanitária da década de 1950 – Decreto 30.691 – definia que produtos de leite e derivados que fossem comercializados deveriam passar por um processo de pasteurização, que consiste em aquecer o leite a temperaturas elevadas, por um curto período, para eliminar micro-organismos patogênicos. Com isso, o QMA, produzido com leite cru, segundo a tradição secular, estaria proibido de ser comercializado, pois não passa pelo processo obrigatório.
Produtores de queijo do Estado se organizaram e criaram associações para mudar esse cenário. Com o apoio do poder público e da iniciativa privada, conseguiram aprovar a Lei Estadual 14.185/2002, que dispõe e regulamenta a produção do Queijo Minas Artesanal seguindo critérios rígidos estabelecidos para assegurar a qualidade e evitar qualquer tipo de contaminação.
O secretário de Estado de Agricultura e Pecuária, Thales Fernandes, destacou ainda que, recentemente, o Modo de Fazer Queijo Minas Artesanal recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. A condecoração abrange um conjunto de expressões de vida e tradições que são transmitidas por gerações.
“O queijo é feito aqui, em Minas Gerais, há mais de 300 anos. O modo de fazer – a partir do leite cru de vacas criadas nessas regiões – foi reconhecido pela Unesco, e isto se deve à união de todos os esforços: Estado, municípios, sociedade e produtores. Para existir, todo produto alimentício precisa ter identidade e padrão de qualidade”, ressaltou. Só a partir dessa adequação, o queijo saiu da clandestinidade e passou a ter autorização para ser comercializado.
Para ser reconhecido pelo Ministério da Agricultura como um produto saudável e que não ofereça risco à população, o queijo precisa se adequar às regras de vigilância sanitária e obter selos de inspeção para, assim, poder ser comercializado.
Conforme o secretário, seguir esses critérios na produção do queijo é importante e necessário, pois facilita o comércio. “Foi uma caminhada árdua e longa, pois era preciso identificar as regiões produtoras e caracterizar o queijo produzido em cada uma delas. As legislações anteriores colocavam que o queijo produzido a partir do leite cru tinha que maturar por pelo menos 60 dias”, afirmou Fernandes.
Para quebrar esse paradigma, a caracterização do produto colocava Minas Gerais em um diferencial em relação aos demais Estados. “Dali começamos um trabalho junto ao Ministério da Agricultura para reconhecer o modo artesanal na produção do queijo. Juntamos pesquisas e dados científicos, pois é fundamental esclarecer para o legislador”, revelou o secretário.
A higiene e o cuidado na produção do QMA têm que ser seguidos à risca. Qualquer tipo de contaminação pode interferir no processo de produção, modificando aroma, sabor e textura, por exemplo. Nas propriedades onde a reportagem de O TEMPO esteve, do curral à queijaria, tudo é extremamente organizado e limpo. Em algumas, vimos o processo acontecer da janela, através de uma tela que impede a passagem de insetos. “Tem que ‘ispiá’ da janela”, disse uma das colaboradoras em uma das queijarias visitadas.
Maria Cristina ressaltou que é preciso seguir normas técnicas de preparo para garantir a qualidade do produto e, claro, evitar a contaminação por agentes externos que podem comprometer tudo. “Da retirada do leite da vaca ao processo de fabricação, o tempo é curto”, lembrou Cristina, ao mostrar um dos queijos produzidos na sua propriedade. “Aqui, temos do queijo fresco até o mais curado (que exige um período de ao menos 14 dias de maturação)”, contou. A fala dela é reiterada por Ivair José e Guilherme Ferreira.
“A higiene é um dos fatores fundamentais na produção do queijo”, ressaltou Thales Fernandes. “Por ser um produto de origem animal, estamos mais suscetíveis às doenças, e isso tem um peso na avaliação e na comercialização do produto”, disse.
*Sob a supervisão de Lorena K. Martins