Sabor, história e tempo são pilares que formam a cozinha mineira, celebrada oficialmente em 5 de julho – o Dia da Gastronomia Mineira. Apesar de pratos icônicos que tornaram Minas Gerais reconhecida ao redor do mundo – como o frango com quiabo, o feijão tropeiro e o tutu de feijão –, há uma cultura alimentar que se construiu entre quintais, tachos, livros de receita e ensinamentos passados de geração em geração.

Só que muito do que sustenta essa tradição pode estar prestes a se perder – estamos falando de modos de preparo e receitas que marcaram gerações nas cozinhas mineiras. O frango ao molho pardo, por exemplo, já quase não aparece nem nos restaurantes: falta o sangue fresco, mas também falta prática. “A gente vai trocando o valor do quintal pelo da praticidade. A comida muda com o tempo, mas algumas coisas vão deixando de ser passadas adiante”, diz o professor de Gastronomia Sinval Espírito Santo, também chef da Tibo Cucina.

Sinval, que também pesquisa a identidade alimentar mineira, explica que nossa cozinha se constrói a partir da forma como lidamos com o que temos: o porco e o frango, a banha, o alho e a cebola. “Mas o que nos define não é só o ingrediente – é o gesto, o cuidado, a troca. É a maneira como a comida vira afeto”, afirma.

Em Belo Horizonte, chefs e profissionais da gastronomia vêm apostando no resgate desses saberes como forma de preservação. Mas o desafio vai além da cozinha: envolve política, educação e memória. A ausência de um curso de Gastronomia em uma universidade pública na capital, por exemplo, é uma lacuna apontada por muitos como um entrave à valorização formal da culinária mineira, segundo Sinval. “É um absurdo que um estado com tanta relevância cultural ainda não tenha isso. Precisamos de um espaço acadêmico onde possamos estudar, discutir e projetar nossa cozinha para o futuro”, defende o professor.

Em contrapartida, movimentos de resgate ganham força nas cozinhas da capital, com chefs apostando na revalorização de saberes tradicionais e receitas que ainda podem ser apreciadas e, mais do que tudo, preservadas.

Amor em pedaços

Na confeitaria Minha Vó, que fica no Mercado Novo, a confeiteira Natália Franco explica que cada doce conta uma história, e poucas são tão carregadas de afeto quanto o doce “amor em pedaços”, feito a partir da combinação do abacaxi com coco ralado e cozidos no tacho. Receita tradicional e pouco comum nos balcões de hoje, ele conquistou espaço no cardápio quase por insistência da mãe da confeiteira, que sempre foi apaixonada pelo doce. A memória do preparo feito pela avó, o costume de comê-lo ainda quente e o formato delicado fazem do doce um elo entre gerações.

“Fiquei relutante em colocá-lo no cardápio porque nunca fui muito fã”, admite Natália. Mas a recepção foi imediata: o ‘amor em pedaços’ se tornou um dos mais vendidos da casa, especialmente por despertar memórias antigas em muitos clientes. Curiosamente, também chama a atenção de jovens que nunca haviam provado o doce antes. “É bonito ver esse resgate acontecer. Tem algo de reconfortante nele, algo que permanece”.

Doce Amor em Pedaços, da confeitaria Minha Vó. Foto: Luiza Prado/Divulgação 

Brazuca

De fato, o restaurante Xapuri é uma verdadeira embaixada de sabores e tradições mineiras. Entre tantas receitas que mantêm viva a memória de Dona Nelsa - falecida em 2023 -, um doce em especial se destaca: a casquinha de limão recheada com doce de leite, batizada de Brazuca.

“As pessoas não fazem mais esse doce, não é por falta de ingrediente, mas pelo trabalho que dá. É mais trabalhoso do que tirar veneno de mandioca brava”, brinca o chef Flávio Trombino, filho da matriarca e guardião de seu legado.

O preparo é minucioso e leva cerca de oito dias. Cada limão tem a casca delicadamente esfoliada com açúcar. Depois de cortadas ao meio, as casquinhas são escaldadas e deixadas de molho por sete dias, com a água sendo trocada pelo menos três vezes ao dia. Só então, com cuidado e uma colher, retira-se a polpa, e as casquinhas seguem para o tacho com açúcar.

“Tudo em fogo baixo, sempre com delicadeza, para que elas não se quebrem”, detalha o chef, que credita o sucesso da receita à doceira Soraia, há 30 anos na cozinha do Xapuri. “O sentimento é de responsabilidade e de valores inegociáveis. A resistência dela não pode ser em vão”, resume Trombino, referindo-se à força e à história de sua mãe.

Jacuba

Fundado em 1990 no bairro São Pedro, em Belo Horizonte, pelo ícone da culinária mineira Maria Lúcia Clementino Nunes - a Dona Lucinha -, o Restaurante Dona Lucinha é um dos principais redutos da preservação da cultura alimentar dos tempos coloniais de Minas Gerais. Sob o comando da chef e historiadora Márcia Nunes, filha da matriarca, o cardápio carrega a memória viva da cozinha tradicional do estado.

Um dos preparos emblemáticos é a jacuba, mistura simples e ancestral de farinha de fubá torrada com café, que pode levar ainda rapadura e cubos de queijo Minas.“É um desjejum maravilhoso e nutritivo, com a proteína do queijo e o estimulante do café. Dá sustança”, define Márcia.

A farinha usada na receita, aliás, segue sendo preparada artesanalmente no restaurante - tostada com urucum, soro de queijo e banha de porco — e acompanha outros pratos da casa, mantendo viva a alma da cozinha de raiz.

Jacuba é uma tradição antiga no Dona Lucinha. Foto: Miguel Aun/Divulgação 

Fubá suado

No restaurante Trintaeum, o fubá suado ganhou lugar de destaque no café da manhã — e no coração da chef Ana Gabi Costa. A receita, que ela conheceu pelas mãos de um amigo cozinheiro, se transformou em símbolo de afeto e identidade. “Naquele momento entendi quanto carinho havia nesse preparo”, lembra.

Com textura leve, úmida e soltinha, o fubá suado é feito a partir de fubá fininho de moinho d’água, cozido lentamente na panela. Para a chef, ele expressa como poucos a riqueza da culinária mineira: “É simples, mas profundo. Um prato que acolhe”.

No Trintaeum, a receita respeita a tradição, mas ganha refinamento no ponto de cozimento e na escolha rigorosa de insumos locais. Servido com ovo caipira frito na manteiga, ele traduz a proposta da casa: valorizar sabores de origem com sofisticação e cuidado.

A recepção do público reforça o acerto. Para muitos, o prato desperta lembranças queridas; para outros, é uma descoberta surpreendente. “É emocionante ver como algo tão singelo pode tocar as pessoas. É isso que buscamos: servir memória, história e afeto em cada garfada”, diz a chef.

O fubá suado vem repleto de memória no Trintaeum. Foto: Victor Schwaner/Divulgação

Frango ao molho pardo

Fundado em 1950 por Dona Maria, o restaurante Maria das Tranças, em Belo Horizonte, existe há 75 anos reconhecido pela tradição do frango ao molho pardo como prato único e símbolo da casa. A receita, preparada desde o início com sangue fresco e frango abatido no próprio local, segue inalterada por várias gerações da família.

O empresário Ricardo Rodrigues, neto da fundadora, destaca que o cuidado artesanal e o preparo sem ingredientes congelados garantem o sabor único. Ele mantém o próprio abate das aves, essencial para a preparação do molho pardo, que leva sangue fresco - ingrediente cuja comercialização é proibida. “Não é um prato que se encontra em toda esquina. É uma iguaria exclusiva da nossa cozinha. E não basta ter o sangue -  tem que saber fazer”, afirma Ricardo.

Ricardo relembra que o frango a molho pardo passou a ser servido de forma quase performática por Dona Maria, na cozinha a lenha, com o abate feito na hora e tudo preparado ali mesmo, diante dos clientes. “Aquilo que hoje se chama de cozinha ao vivo, minha avó já fazia nos anos 50”, conta.

Frango ao molho pardo do Maria das Tranças é um clássico da casa. Foto: Rayana Almeida / Umami Comunicação

Data

O Dia da Gastronomia Mineira é celebrado em 5 de julho, data escolhida em homenagem ao nascimento de Eduardo Frieiro. Intelectual mineiro, Frieiro dedicou parte de sua vida ao estudo da cultura do estado - incluindo sua rica tradição culinária - e é autor de “Feijão, Angu e Couve”, considerado o primeiro livro sobre a cozinha mineira.

Onde ir:

Maria das Tranças (Rua Estoril, 938, São Francisco)

Minhavó Confeitaria (Avenida Olegário Maciel, 742, Loja 2065, Centro - Mercado Novo)

Xapuri (Rua Mandacaru, 260, Trevo/Pampulha)

Dona Lucinha (Rua Padre Odorico, 38, Savassi)

Trintaeum (Rua Professor Antônio Aleixo, 20, Lourdes)