Em Salvador ou na Praia do Forte, a cozinha de Kaywa Hilton parte sempre de um ponto central: o ingrediente. À frente do Boia e do Maré, o chef franco-baiano – filho de mãe francesa e pai baiano de origem libanesa – vem construindo uma identidade que mistura técnica francesa, viagens pelo mundo e, sobretudo, a escuta atenta aos saberes locais. O resultado é uma gastronomia precisa, mas de alma leve, guiada pelo território e com os produtos baianos no primeiro plano.
Antes disso, Kaywa acumulou um repertório diverso ao longo de 34 anos, que moldou sua visão de cozinha. Mineiro do Vale do Matutu, cresceu entre a Normandia e Salvador, até se mudar para Paris aos 17 anos. Lá, formou-se na École de Paris des Métiers de la Table e passou por cozinhas estreladas como o Le Pré Catelan e La Grande Cascade. De volta ao Brasil, trabalhou no Le Pré Catelan, no Rio de Janeiro (à época Sofitel, hoje Fairmont), além de vivências na Austrália, Indonésia e Sri Lanka, que ampliaram seu repertório multicultural.
O retorno definitivo ao Brasil foi em 2019, logo após participar do reality “Mestre do Sabor”, da TV Globo, e abrir o Boia, em Salvador. Inicialmente em um espaço compartilhado com uma cervejaria artesanal, o restaurante ganhou nova sede em um casarão no bairro do Horto. Ali, a gestão e a hospitalidade ficaram sob os cuidados da irmã Thabata Hilton, que, além de sócia, também assina a elogiada playlist da casa. “No Sofitel havia muitos protocolos. Quando abri o Boia, foi uma verdadeira revolução na minha vida. Deixei a barba crescer, tirei a dólmã. Faço algo que realmente me representa”, conta o chef.

No Boia, a cozinha ganhou liberdade e leveza sem abrir mão do rigor técnico. Uma vitrine exibe peixes maturados regionais, como guaruba e xaréu, fruto da relação direta com pescadores da Praia do Forte - cerca de 80 km de Salvador. Entre os pratos, destacam-se o bao feito com brioche de dendê com picles de chuchu e siri (existente desde o primeiro ano do restaurante); o atum maturado ao poivre com pimenta baiana, que sintetizam a fusão entre técnica francesa e referências locais; crudo de peixe do dia - como o cabeçudo, parente do carapau - servido com pimenta fermentada e tacos de cupim, tortilhas de mandioca pubada, cupim desfiado e vinagrete de abacaxi além do jamón de atum e melão do chef, feito com atum curado e defumado na casa, melão, manjericão e foccacia de fermentação natural.

Já a sobremesa com mel de abelha uruçu nordestina, do Meliponário Polém Dourado (em Açu da Torre, Mata de São João), e sorvete de boursin de cabra produzido também na região pelo Capril R.A, resume sua filosofia: valorizar o pequeno produtor e promover a preservação. “A França me deu bases sólidas para construir uma cozinha com personalidade e consciência. O maior legado foi aprender a tratar com cuidado qualquer ingrediente, seja uma cenoura ou uma lagosta”, afirma.

Integração do território baiano
Já em 2024, chef Kaywa Hilton e sua irmã e sócia Thabata Hilton inauguram o Maré, que nasceu à beira-mar da Praia do Forte com uma proposta clara: integrar-se à comunidade pesqueira. “Os locais já entendem como lidar com frutas, fazem compotas, doces, aproveitam o pescado. Então o Maré nasceu dessa vontade de se conectar com esse modo de viver”, explica.
O cardápio reflete essa proposta com preparações frescas, diretas e cheias de personalidade. Com um leve sotaque oriental, destaca-se o crudo de peixe servido com arroz japonês, ponzu, alga nori e furikake - para ser montado como um temaki pelo próprio cliente. Há também combinações que valorizam ingredientes locais, como o boursin de cabra com tomates tostados, mel de abelha uruçu e azeite de ervas, além do peixe grelhado - cuja espécie varia conforme o mar do dia - servido com couve-manteiga, tucupi, arroz cateto e vinagrete de banana-da-terra. Entre outros destaques, estão os bolinhos de peixe da casa com salsa verde e pratos que combinam queijos de cabra artesanais com hortaliças frescas colhidas em pequenas hortas da região e frutas - cacau, açaí e cupuaçu - do projeto Bicho Preguiça.

Sapecada?
O maré também realiza eventos. Em agosto, realizou uma sapecada - uma tradição local, um churrasco de frutos do mar, que são pescados e assados na hora, ali na beirinha da água - e convidou os amigos e chefs Fabrício Lemos e Lisiane Arouca, do Grupo Origem, para a ocasião. O menu do evento contou ainda com uma das especialidades do chef Fabrício Lemos: arroz kirimurê, preparado com aioli de dendê que também leva frutos do mar temperados. As sobremesas ficaram à cargo da chef Lisiane Arouca, especializada em doces: bolo pudim de tapioca com queijo, creme ingles de maracujá, ambrosia e sorvete de coco.
Foi no Maré que Kaywa viveu uma das experiências mais marcantes da carreira. Logo na abertura, recebeu a visita inesperada de Miguel Marcovaldi, fundador do Projeto Tamar. “Ele apareceu com um isopor cheio de peixes que eu nunca tinha visto no Brasil. A partir dali começou uma troca incrível: eu trazia técnica, ele trazia conhecimento de pesca. Até hoje nos reunimos toda semana para conversar e experimentar”, relembra.
Para o chef, simplicidade não significa falta de rigor, mas respeito ao que cada produto tem de melhor. “A gente tenta aplicar o mínimo de interferência para que as pessoas entendam o quanto a Praia do Forte e a Bahia são ricas”, diz. Essa lógica também se reflete, novamente, na rede de fornecedores: queijos de cabra, méis de uruçu, bananas-da-terra, coentro fresco e mandioca chegam pelas mãos de produtores locais que se apoiam mutuamente. “Se o queijo não pode entregar, o mel pega e traz. Criamos um elo muito forte com as pessoas locais.", disse.

A experiência de visitar o local se torna ainda mais especial com a hospedagem na Casa Nômade - projeto da mãe do chef, Carole Hilton, que oferece aluguel de casas de luxo com um toque personalizado. Durante a estadia, é possível desfrutar de pratos da culinária local preparados sob medida por uma cozinheira da casa. Entre as opções, uma moqueca acompanhada de diferentes tipos de farofa e, para finalizar, uma irresistível cheesecake de doce de leite.
O impacto desse modelo é visível. “Claramente, há reflexo na economia local. A gente se abastece dos ingredientes da região, o que não é tão comum em restaurantes comerciais. Mas, acima de tudo, eu aprendo muito com eles, e isso me transforma como profissional”, finaliza o chef.
Serviço:
Boia Restaurante
Rua José Avena, 01 – Horto Florestal, Salvador/BA
Funcionamento: terça a sábado, 12h às 16h e 18h30 às 23h; domingo, 12h às 16h
Reservas: (71) 99694-2630
Maré Praia do Forte
Alameda do Sol – Praia do Forte, Mata de São João/BA
Reservas: (71) 99660-5282
Funcionamento: terça a sábado, 12h às 23h; domingo, 12h às 17h