Fazer uma refeição pode significar muito mais que satisfazer a fome: um prato pode também trazer informações sobre a nossa cultura, sobre as nossas escolhas ou sobre o próprio mundo. Esse foi o fio condutor do painel “Você é o que você come: cultura e saúde no prato”, que abriu o Seminário O TEMPO Gastrô, que começou nesta terça-feira (29), no Mercado de Origem de Belo Horizonte, no bairro Olhos D’Água. O debate teve como convidadas a pesquisadora de culturas alimentares Patty Durães e a nutricionista e terapeuta do comportamento alimentar, Ana Soares. A conversa foi mediada pela jornalista e curadora do evento, Lorena Martins.
Terapeuta Ayurveda e especializada em saúde da família, Ana Soares refletiu que ligar o “piloto automático” para a alimentação pode representar uma série de danos à saúde física e mental. “Quando nos damos conta de que agir de forma automática em relação à alimentação pode trazer consequências negativas, como problemas de saúde, aumento de peso e baixa vitalidade, precisamos repensar nossa relação com a comida. É preciso olhar para o prato e se perguntar: onde estou investindo meu tempo? O que realmente é importante para mim? O que é valor para mim? Observar de onde vem a comida que consumimos e qual o seu significado para nós é fundamental”, ponderou.
Ana pediu que os participantes fechassem os olhos e se transportassem para a melhor lembrança com uma comida. “Aposto que vocês pensaram em um lugar de afeto e de carinho. Essa lembrança nos ajuda a entender que o que colocamos no prato tem um valor muito além da simples nutrição”, enfatizou. Na sequência, Patty Durães assumiu o microfone e destacou que se sentiu transportada diretamente para a cozinha da avó. E isso tem a ver com o trabalho que ela desenvolve. Patty estuda a influência das heranças afrodiaspóricas na culinária brasileira.
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“Eu pesquiso cultura alimentar porque eu gosto de reparar na casa dos outros. Quero saber se as pessoas comem farinha de mandioca do supermercado, comprada na feira ou produzidas por elas próprias. É um campo de pesquisa profundo, e o letramento racial precisa e deve perpassar também pela comida. Se a comida define quem somos, nós somos afroindígenas”, enfatizou.
Em seguida, a mediadora Lorena Martins levantou a questão que, muitas vezes, nós desconhecemos nossa própria cultura, e isso reflete diretamente nas nossas escolhas alimentares. Ela também questionou como conseguir comer bem em um mundo cujos alimentos in natura têm ficando cada vez menos acessíveis. “Os nossos saberes foram apropriados, e nosso conhecimento nos foi privado por uma cultura colonizadora. Mas o alimento também é uma ferramenta de comunicação: quando eu converso com meu prato, quero saber de onde vieram os alimentos, quem os produziu, quanto o fornecedor recebeu para poder prepará-lo… Trata-se também de um campo político”, analisou Patty.
“Trabalhar o autoconhecimento é fundamental para entendermos as necessidades do nosso corpo, nossas preferências e como construir uma alimentação com identidade. Isso significa atender às necessidades nutricionais de forma individualizada, pois a nutrição engloba tudo isso. Mas nem todo mundo vai comer de forma saudável da mesma maneira. A partir do autoconhecimento, podemos traçar novas rotas e construir uma relação mais consciente com a comida”, destacou Ana Soares.
Ultraprocessados são vilões da alimentação
Durante o painel, as palestrantes discutiram ainda como as redes sociais podem ser danosas quando se trata de alimentação saudável. O arroz com feijão, prato tipicamente brasileiro, por exemplo, virou um grande inimigo da dieta, por conta de perfis que atacam esse tipo de combinação. “Sou nutricionista há 15 anos, e fico impressionada como mudaram as questões das pessoas que vão ao consultório. Antigamente, não era comum as pessoas terem medo de comer arroz e feijão. Com o aumento da obesidade no mundo, toda a responsabilidade passou a recair sobre os carboidratos, mas o que realmente aumentou a obesidade foi o consumo de alimentos processados. Quando comparamos o valor calórico por grama de um alimento natural e um ultraprocessado, vemos que, mesmo comendo uma pequena porção do ultraprocessado, ingerimos muito mais calorias”, salienta Ana Soares.
“Quando penso no futuro, faço um convite para olhar para o passado. Somos de uma geração que viu ultraprocessado surgir 20 anos atrás sendo um alimento caro. Mas só hoje, entendemos a relação entre esses alimentos e problemas como obesidade, câncer, diabetes, hipertensão e problemas gastrointestinais. Há 20 anos, essa conexão não era tão clara. E enquanto os ultraprocessados se tornaram mais acessíveis, os alimentos frescos estão cada vez mais caros. Existem espaços para todos os tipos de alimentos, desde que pensemos na quantidade, frequência e saúde do nosso corpo naquele momento”, indicou Ana.
Como uma forma de mudar esse cenário, Patty Durães defendeu a volta da prática de cozinhar. “Quando cozinhamos, temos autonomia alimentar. Se a indústria produz um alimento, é porque a dona de casa já o fazia antes. Mas claro que isso é algo difícil. Imagine que eu peça uma mãe de família que passa quatro horas no transporte público para que ela faça o próprio molho de tomate? Entretanto, é preciso pensar que existe toda uma mensagem subliminar por trás da indústria alimentar que vende a ideia de bem-estar por meio de alimentos ultraprocessados”, diagnosticou.