COMPORTAMENTO

Reclamar de forma constante pode afetar as relações interpessoais e a saúde mental

Mudanças de comportamento exigem autoavaliação constante, às vezes com a necessidade de ajuda psicológica

Por Paulo Henrique Silva
Publicado em 08 de maio de 2024 | 06:05
 
 
 
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Quem foi criança na virada do milênio certamente deve ter se deparado, em algum momento, com o frisson em torno do desenho “As Meninas Superpoderosas”, sobre três meninas em idade pré-escolar com grandes habilidades. Elas tinham personalidades bem diferentes entre si – e em Docinho, apesar desse nome fofo, se destacava o lado ranzinza, sempre reclamando de tudo e todos. 

No mundo da animação, Docinho é um dos raros personagens com esse tipo de característica a alcançar sucesso. Na vida real, ela dificilmente seria tão popular com o jeito mal-humorado, com um indisfarçável prazer em bater nos outros. Provavelmente estaria no divã do psicanalista tentando entender a razão de perder tantas oportunidades e relacionamentos.

“O fato de reclamar já é um pouco inerente a nós”, avisa Erika Miranda, psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental. O que muda, segundo ela, é o que vem depois, sobre o que cada um vai fazer com essas queixas. 
“Normalmente, acontece alguma coisa, a gente reclama, mas resolve. A reclamação mais saudável é aquela que, ao se reclamar de algo e não gostar, há uma ação. Isso não acontece com os reclamões”, analisa.

Aquele que vive de murmúrios, para quem nada está bom, não assume nenhuma atitude para resolver o que tanto o incomoda. “Além de ficar reclamando o tempo todo, (esse traço) pode ser uma estratégia da pessoa de enfrentamento para lidar com algumas coisas da vida, que podem ser estresse e frustração. E, para ela, é superfuncional”, elabora a psicóloga.

Erika pondera que, em curto prazo, o reclamão até pode tirar proveito disso, mas, para quem está ouvindo, significa um tormento. Especialmente se é obrigado a conviver diariamente com a pessoa, como um cônjuge, um filho, neto ou mesmo companheiro de trabalho. Na série “Supernatural”, por exemplo, há um personagem, Bob, que pragueja tanto que até criou um palavrão próprio (“idjit”).

A verdade é que ninguém nasce reclamão. As origens para essa atitude são várias, como o ambiente em que a pessoa cresceu. “Se os primeiros cuidadores são gente que frequentemente reclama, ela acaba aprendendo. Para essa pessoa, reclamar passa a ser uma forma normal de se expressar. O contexto familiar diz muito da forma como será a vida adulta”, explica Erika.

Ela também ressalta que há indivíduos que têm dificuldade de enfrentar situações desafiadoras e contratempos da vida e outros em que os protestos estão ligados a uma necessidade de chamar atenção. “Acaba sendo uma maneira de se validar diante do outro. Não consegue dizer que precisa de atenção, mas reclama como forma de troca às vezes”, avalia a psicóloga.

As reclamações geralmente têm um mesmo sentido, quando a pessoa diz que nada dá certo para ela, como se encarnasse a figura de um azarado ou sofredor de toda sorte de contrariedades. “É capaz de reclamar da chuva, do sol ou qualquer coisa do clima...”, frisa. Um exemplo clássico disso é o Grinch, uma criatura verde que detesta o Natal e fica muito mal-humorado nessa época do ano.

O problema vira uma doença quando passa a afetar a qualidade de vida da pessoa e de quem está ao seu redor. “No consultório, a gente avalia a frequência das reclamações, o impacto na qualidade de vida, podendo chegar a um quadro de fundo psicológico, em que a pessoa está depressiva e ansiosa e começa a reclamar disso”.

Reclamar não é algo necessariamente ruim

Erika deixa claro que o ato de reclamar não é proibido. “Quem fica indiferente não age, né?”, frisa. Na animação “Divertida Mente”, são mostrados cinco personagens que representam as emoções humanas – Alegria, Tristeza, Nojinho, Medo e Raiva. Cada uma delas tem um papel determinante nas experiências de vida de uma garota. Assim, a raiva não é necessariamente ruim, sendo vital para o nosso equilíbrio.

“Vão ocorrer situações em que precisaremos, sim, reclamar, seja em casa ou no trabalho. Se tem algo que não gostei, vou tomar uma ação, levando o outro a se posicionar diante de uma reclamação minha. Mas viver a vida toda reclamando é exaustivo. Não flui. Parece que a vida não anda”, pondera. E o resultado dessa insistência pode gerar graves transtornos psíquicos.

“A negatividade pode aumentar o estresse. Ao informar constantemente que seu corpo não está bem, que está tudo negativo, seu cérebro vai processar isso, o cortisol aumentará e a pessoa ficará estressada”, destaca, No âmbito familiar, as relações vão se deteriorar, chegando ao extremo de quem está ao redor evitar a todo custo um contato mais próximo ou alongado.

“As pessoas passam a viver naquela distância de segurança. Para elas, eu recomendo estabelecer limites saudáveis e, durante as conversas, tentar levar algo mais positivo. Se houver reclamação, tentar mudar de assunto de uma forma sutil e colocar um contraponto que pode ser mais positivo. E, dependendo do tipo de relação que tem, dizer que está incomodado. E se estiver aberta para mudanças, indicar soluções”, sugere.

A psicóloga também recomenda cuidados no uso das redes sociais, que podem estimular muito a visão de uma vida sem prazeres. “Se você já tem uma visão mais negativa, elas podem potencializar. As redes sociais são aquela terra sem lei, em que todo mundo posta o que quer. Entra numa questão de comparação, que é muito grande no meio virtual, passando a desacreditar de tudo”.

Para deixar de ser reclamona, diz Erika, a pessoa precisa, primeiramente, reconhecer que possui padrões de pensamentos mais negativos. “Na terapia, ela consegue começar a mudar o olhar dela de alguma forma. Entre as atividades que incentivamos está exercitar o hábito da gratidão e ter mais consciência da situação de que está reclamando. São perguntas que as pessoas podem fazer e ver o outro lado da moeda”.

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