Vitiligo

Aceitação de cicatrizes e manchas favorecem autoestima e bem-estar

Condições como o vitiligo ainda são motivo de preconceito na sociedade


Publicado em 15 de setembro de 2021 | 03:00
 
 
 
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Em 2005, em uma consulta de pré-natal, Michelle Rosa recebeu do obstetra o diagnóstico de vitiligo, uma condição genética, crônica, não contagiosa e de origem autoimune, caracterizada pela perda da coloração da pele em áreas do corpo e que costuma ser desencadeada por fatores emocionais. Como, naquele primeiro momento, as manchas surgiam apenas em partes do corpo que ficavam menos visíveis, a pedagoga não buscou por nenhum tratamento. Mas, em 2007, essas marcas começaram a aparecer em regiões mais expostas. “Pequenos pontinhos foram aparecendo em minhas mãos. Foi quando eu busquei ajuda médica e comecei a usar pomadas e tomar medicamentos via oral para conter o avanço do vitiligo”, relata. 

Por muitos anos, Michelle acreditou que lidava bem com aquela condição genética sobre a qual pouco sabia. “Olhando em retrospecto, percebo que, na verdade, eu não enfrentava essa questão, porque ainda era algo muito discreto. Muita gente da minha convivência nem sabia que eu tinha esse diagnóstico, tampouco eu sentia necessidade de falar sobre esse assunto”, comenta. Tudo mudou em 2018. “Foi quando o vitiligo entrou em atividade de forma acelerada. Então, quando começou a aparecer no meu rosto, resolvi não tratar mais e lidar com essas marcas que iam aparecendo mais e mais”, relata, detalhando que, naquele instante, iniciou uma jornada de autoconhecimento e de ativismo de que muito se orgulha. 

“No início, me sentia mal ao notar que, automaticamente, as pessoas passaram a me lançar olhares e até a se afastar de mim. Notei que muito daquilo se devia à falta de informação, tinha quem acreditasse que, se ficasse por perto, seria contaminado. E essa reflexão me fez sentir necessidade de falar sobe o que eu estava vivendo”, expõe. Michelle ainda lembra que as redes sociais foram fundamentais nessa fase. “Comecei a procurar outras pessoas que também tinham vitiligo e vi que era possível conviver com as manchas e ser feliz”, informa, pontuando que todos esses movimentos foram fundamentais para um processo de aceitação que exige resiliência. “Não somos ainda uma sociedade pronta a acolher o diferente. E isso eu senti na pele”, critica. 

Espontaneamente, Michelle passou a atuar como uma ativista pela normalização do vitiligo. Uma luta que ela entende como parte do movimento “body positive”, que, na contramão da padronização dos corpos, defende que todos os seres humanos devem ter uma imagem corporal positiva. “Comecei a desenvolver campanhas, como ensaios fotográficos focados na valorização da beleza dessas pessoas, lancei camisetas informativas com a temática do vitiligo e criei também projetos específicos para o acolhimento das crianças que apresentam manifestações dessa condição genética”, informa.  

Em junho deste ano, Michelle colheu um dos mais significativos frutos da luta por um olhar mais naturalizado para as pessoas com vitiligo. Com apoio de parlamentares e da comunidade de Belford Roxo, cidade em que ela vive e que está localizada na Baixada Fluminense, o ativismo transformou-se em política pública com a instituição do Dia Municipal de Conscientização do Vitiligo, celebrado localmente em 25 de junho. Além disso, pessoas com vitiligo e psoríase (condição autoimune, não contagiosa e inflamatória caracterizada pelo aparecimento de lesões cutâneas) passaram a ter garantido o atendimento prioritário com especialistas em dermatologia e psicologia. 

Saúde mental em foco 

O projeto é elogiado pela psicóloga clínica Angela Boseli. “Sabendo que algumas dessas manifestações têm fundo emocional, entendo que é fundamental garantir atendimento multidisciplinar para esses pacientes, o que pode contribuir até mesmo para um controle da evolução dessas manchas”, opina. 

Angela sinaliza que o acompanhamento terapêutico é também importante no sentido de ajudar os indivíduos que têm essa condição genética a reconstruir a própria autoimagem.  

“Todos nós mudamos com o tempo. Mas, no caso dessas pessoas, essa transformação pode acontecer rapidamente. E isso pode gerar um estranhamento em relação à própria imagem. Um sentimento que vai ser reforçado pelo olhar do outro. Afinal, vivemos em uma sociedade muito apegada a padrões e que não aceita plenamente os corpos divergentes”, examina Angela, acrescentando que esse fenômeno costuma impactar a forma como esses sujeitos se percebem e se colocam no mundo. 

Para a psicóloga, é mais uma ameaça à saúde mental dessas pessoas a pressão estética – termo utilizado para designar a sensação de cobrança que, potencialmente, atravessa todas as pessoas – sobretudo, as mulheres – e gera uma obstinada busca pelo “corpo perfeito”, repercutindo em constante mal-estar em relação à própria aparência.

“Diante desse olhar opressivo do outro e estando inseridos nessa cultura de supervalorização de um padrão corporal, vamos sentir que há algo de errado em nós, que devemos sentir vergonha pelo que somos. E esse cenário hostil piora pela falta de informação, sendo comum o relato de pessoas que vão se afastar de alguém com vitiligo pensando tratar-se de uma doença contagiosa”, avalia a psicóloga. Efeito disso, o sujeito que possui essa condição genética pode optar por ficar cada vez mais recluso, evitando o contato com o outro, e ver sua autoconfiança e sua autoestima minadas. “Tudo isso vai trazer consequências de ordem emocional, social, profissional e afetiva, acarretando, por exemplo, quadros de depressão”, conclui.

Apropriar-se da própria história

Angela Boseli defende que pessoas que possuem marcas na pele busquem se apropriar de suas próprias histórias, entendendo que são maiores e que suas identidades não podem ser reduzidas ao que é apenas uma característica cravada na epiderme. Um conselho que a Giulia Dias seguiu instintivamente. 

Aos 9 anos, a modelo curitibana foi vítima de um acidente automobilístico que deixou nela uma cicatriz facial. “Sempre tive dentro de mim que o acidente teria um significado em algum momento da minha vida. E sempre fui uma pessoa muito resiliente e positiva, sem contar a atuação da minha rede de apoio. Esses fatores sempre tiveram muito peso e determinaram a forma como lidava com as minhas marcas. Agora, entendo mais do que nunca a minha história e a diferença que posso fazer para outras pessoas. As minhas cicatrizes contam sobre a minha história e relembram meu propósito de vida, que é de incentivar, ajudar e espalhar o meu melhor no mundo, buscando o mesmo nas outras pessoas que cruzam meu caminho. Eu amo as minhas cicatrizes e o que elas representam”, garante.

Olhares alheios

“A primeira vez em que me vi com a cicatriz foi quando já estava no quarto do hospital e mais confortável com as cirurgias. Entrei no banheiro com a minha mãe e lembro dela me olhando com uma cara de preocupação. Em seguida, lembro de ter olhado para o espelho e visto a cicatriz. Eu levantei os ombros, como quem dizia: ‘Ah, beleza! É uma cicatriz’”, recorda-se, adicionando nunca ter questionado as suas marcas. “Sempre aceitei elas e entendo todo o peso e representatividade que possuem. Contudo, certamente já me senti incomodada, mas com os olhares alheios e não com as cicatrizes”, admite Giulia Dias. 

A modelo diz que desde pequena acompanha o universo da moda. “Mas nunca pensei que eu teria espaço nesse meio. Não tive o corpo ‘padrão’ de uma modelo magra, e achava que as minhas cicatrizes poderiam me impedir de trabalhar nesse mercado”, comenta. 

“Felizmente, com a sociedade questionando um padrão que não existe e com o mercado sendo forçado a mudar, tornou-se mais ter todo tipo de beleza sendo representada. E isso é algo que muda a percepção que temos de nós mesmos. Com todos os trabalhos que tenho feito e com todas as pessoas que tenho alcançado, acredito que, sim, estamos caminhando para uma mudança nesse mercado”, analisa.

Cuidados 

A dermatologista Marília Machado explica que algumas marcas na pele merecem ser investigadas e acompanhadas, mas não precisam ser apagadas. Para ela, o movimento de autoaceitação é oportuno e traz conforto para pacientes com condições como o vitiligo, a psoríase e a pele acneica ou que possuem cicatrizes visíveis. 

“É importante dizer que, mesmo para quem opta por tratar essas questões, nem sempre é possível remover completamente essa marca. Às vezes, no máximo, conseguimos amenizar”, diz. 

Por outro lado, Marília reforça ser fundamental o acompanhamento médico nesses casos. “E aqui estamos falando sobre saúde, e não sobre estética. Isso porque a pele sem a melanina, como no caso das manchas do vitiligo, é mais vulnerável ao desenvolvimento de problemas de saúde. Da mesma maneira, as cicatrizes também aparecem como regiões em que há mais incidência de câncer de pele. Portanto, é preciso monitoramento, hidratação e uso constante de protetor solar adequado”, aconselha.

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