Livres, empresas patrocinam estímulo ao consumismo

Diferentemente da TV, que tem um controle maior, publicidade infantil faz estragos nas redes


Publicado em 06 de maio de 2018 | 03:00
 
 
 
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Por trás dos vídeos de youtubers envolvendo guloseimas bem calóricas e brinquedos, costumam estar grandes empresas, patrocinadoras dessas celebridades virtuais. No entanto, enquanto na televisão o cerco se fechou para a publicidade infantil desde 2014, quando foi estabelecida a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), contra a publicidade com o intuito de levar a criança ao consumo, o volume de conteúdo e a falta de clareza e de regras direcionadas aos canais do YouTube dificultam o trabalho dos órgãos reguladores.

Mesmo assim, neste ano, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) já puniu um vídeo do youtuber Felipe Neto, retirando-o do ar, por não deixar claro que o conteúdo era um anúncio publicitário. A postagem em questão é o “Desafio Felipe Neto vs. Luccas Neto (Na Netoland)”, em que os irmãos divulgavam um número de telefone para os seguidores ligarem e participarem de um sorteio. Outro ponto apontado como irregular pelo órgão seriam falas no imperativo (bastante usadas pelos youtubers), consideradas impróprias para menores de idade, principal público dos irmãos na plataforma de vídeos.

O Conar confirmou a O TEMPO que, atualmente, 20 vídeos do YouTube voltados para o público infantil estão sendo examinados após denúncias. Entre esses conteúdos, há alguns envolvendo alimentação. No Reino Unido, a Advertising Standards Authority (ASA) lançou em 2015 um conjunto de regras voltado especificamente para essa nova mídia, previamente não regulada: os vlogs.

No Brasil, o Conar atua mediante denúncias dos próprios consumidores. Se falta responsabilidade de anunciantes e criadores de conteúdo, a audiência pode ajudar enviando uma reclamação pelo site www.conar.org.br.

O que já acontece no país em relação a filmes e séries – seja no cinema, na TV ou em serviços de streaming como a Netflix, que precisam informar classificação etária, de forma que os pais e responsáveis pelas crianças e jovens saibam se o conteúdo é adequado para todas as idades ou apenas para maiores de 18 anos –, pode ser expandido.

O Ministério da Justiça avalia ampliar essa regra para vídeos na internet. É uma tentativa de conter o impacto de youtubers populares em crianças de pouca idade. Diante das dificuldades burocráticas, outra possibilidade é que exista a autoclassificação, assim como já ocorre com jogos e aplicativos distribuídos por meio digital. Nesses casos, é preciso seguir o padrão internacional Iarc, um processo feito em minutos e que gera várias classificações oficiais ao mesmo tempo, para dezenas de países.

Para a consultora de comunicação e membro-fundadora da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc), Nádia Rebouças, há alguns anos era inimaginável esse tipo de influência. “Garotos, que nem são tão jovens assim, simplesmente viram produtos e vivem de fazer ‘brincadeiras’ com produtos de consumo, influenciadores, formadores de opinião e publicitários de si mesmos. Fico pensando o que pensa a mãe ao ver o canal do filho de 20 anos que coloca no liquidificador todos os tipos de chocolates que tem no mercado”, analisa.

Nádia apoia a classificação etária nos canais, mas garante que, na internet, “só a legislação não adianta” e é preciso que haja um “momento de reflexão da sociedade” para saber lidar com esse novo fenômeno.

“É importante o assunto tomar a imprensa e as redes sociais para poder tornar os pais mais conscientes. Eu já analisei alguns vídeos e encontrei youtubers que fazem bullying. Acho que o debate, a conversa e o diálogo, com os pais mais atentos, nas famílias e nas escolas, é que vão poder mostrar algum caminho para minimizar os efeitos disso, que vem ganhando cada vez mais força”, afirma.

 

Quanto mais cedo, maior o impacto

Apesar de o YouTube ter classificação etária de 18 anos, seu público é composto também por adolescentes, crianças e bebês. Segundo levantamento da pesquisadora Luciana Corrêa, do ESPM Media Lab, que em 2015 buscou mapear o comportamento infantil no YouTube, é possível identificar, entre os cem canais de maior audiência na plataforma, 36 que abordam conteúdo direcionado a crianças de 0 a 12 anos. 

A descoberta mais impactante da pesquisa, segundo Luciana, confirma uma tendência já apontada em estudos da Europa, que indica que, quanto mais cedo a criança é inserida na plataforma, maior será sua tendência ao consumismo quando for mais velha. No artigo “O que tem dentro da caixa? Crianças hipnotizadas pelo YouTube Brasil, as fronteiras entre entretenimento, conteúdo proprietário e publicidade”, a pesquisadora conclui que “é preciso constantemente pensar a participação da criança na sociedade”. “Pensar em que medida é preciso regulamentar esses espaços de vídeo, garantir a liberdade de expressão e a voz da criança. E ainda, acima de tudo, pensar como protegê-las é dever do adulto, em um ambiente recomendado para maiores de 18 anos, ou com seu acesso sob a supervisão de pai ou responsável”, diz.

Números YouTube

Acessos: Quando considerados os 110 principais canais infantis, o número de visualizações passa de 20 bilhões.

Perfis: A maior parte, 39, é de games, 27 canais são de youtubers mirins e teens, 22 são de programação de TV infantil, 14 de desenhos e musicais infantis não disponíveis na TV, sete de unboxing (abrir caixas de brinquedo) e um canal educativo.

“No YouTube Brasil existem diversos modos de consumir entretenimento, a plataforma agrada crianças de 0 a 12 anos.”

Luciana Corrêa

Pesquisadora

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