Comportamento

Quase 30 milhões de mulheres chefiam os lares no Brasil

Crescimento de 105% desse tipo de lar deve-se ao empoderamento feminino e aos abandonos, diz pesquisador


Publicado em 23 de setembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Durante 14 anos, a técnica em enfermagem Denise da Cruz, 59, precisou trabalhar em três lugares diferentes para sustentar, sozinha, os três filhos. “Sempre trabalhei de noite porque pagava mais. Deixava meus filhos na casa dos meus pais e saía chorando. Eu queria estar mais perto deles. Mas eu precisava de todo dinheiro que conseguisse, porque fazia diferença no final do mês”, afirma. Os três filhos, Henrique, 33, Joice, 30 e Rafael, 28, são de dois pais diferentes. Nenhum deles nunca participou da criação ou a ajudou financeiramente.

Denise e os filhos fazem parte de grupo que vem aumentando substancialmente no país: famílias chefiadas exclusivamente por mulheres. Nos últimos 15 anos, o número de lares com esse formato mais que dobrou, com crescimento de 105% e já representando 40,5% das residências do país. Eram 14 milhões em 2001 e, em 2015, somavam 28,9 milhões. Dessas, 11,6 milhões estão inseridas no chamado “arranjo monoparental”, ou seja, composição familiar de núcleo único (sem cônjuge). No geral, o número de famílias brasileiras (todos os formatos) aumentou 39% no mesmo período.

Os dados fazem parte de uma pesquisa feita pelos demógrafos José Eustáquio Alves e Suzana Cavenaghi, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e publicada neste ano no livro “Mulheres Chefes de Família no Brasil: Avanços e Desafios”. Eles usaram como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que analisou todas as 71,3 milhões de famílias do país. O conceito de chefia usado é o que o instituto oficial chama de “pessoa de referência”: o integrante da família considerado responsável por aquela casa.

De acordo com José Eustáquio Alves, o aumento da chefia feminina teve início nas últimas quatro décadas. “Ela ocorreu, fundamentalmente, em arranjos familiares de núcleo uniparental: família monoparental feminina (mulher com filho e/ou outros parentes e agregados, mas sem parceiro). Nesse caso, essa liderança se deve, automaticamente, à ausência de um marido ou companheiro”, explica o demógrafo.

A técnica de produto odontológico Gislene Almeida, 39, está inserida nesse universo. Mãe de Yann, 16, e Rodrigo, 4, ela passou por dois divórcios. “Tive que assumir a responsabilidade da casa toda: aluguel, contas, compras, escola, plano de saúde. O pai do meu filho mais velho ainda paga pensão. Já o pai do caçula, não, porque está desempregado. Além do lado financeiro, cuido de tudo dentro de casa quando chego do trabalho. Todo dia, acordo me sentindo a Mulher-Maravilha por causa de todas as responsabilidades”, diz ela.

O maior empoderamento feminino nas últimas quatro décadas pode explicar o fenômeno. “O que provocou a mudança foi a maior inserção delas nos estudos e no mercado de trabalho”, explica o demógrafo, para quem essa é uma realidade sem volta, que precisa ser mais bem observada pelo poder público. “As mulheres não têm culpa pelo abandono do parceiro, seja por uma fatalidade ou escolha. Então, é dever do Estado cumprir o que está na lei: fornecer educação integral, sistema de saúde que funcione e geração de emprego”, afirma.

 

Autor: ‘País passa por despatriarcalização’

Em sua formação social histórica, o Brasil foi organizado com base nas relações desiguais de poder e em estruturas hierárquicas e androcêntricas (quando o homem é centro da família), afirma o demógrafo José Eustáquio Alves.

Entre os anos de 2001 e 2015, o total de famílias chefiadas por homens diminuiu de 72,6%, em 2001, para 59,5%, em 2015. “Embora ainda se possam encontrar hoje em dia resquícios da antiga família patriarcal brasileira, a dominação masculina não é mais a regra, e o país passa por um consistente processo de despatriarcalização”, afirma.

De acordo com Alves, o país está vivendo um bônus demográfico – época em que existe um alto percentual de pessoas em idade produtiva –, momento ideal para se dar um salto na qualidade de vida da população e na redução das desigualdades entre homens e mulheres. “A Constituição Federal de 1988 foi um divisor de águas e possibilitou que a legislação ordinária avançasse rumo a uma maior equidade de gênero”, diz.

 

Mesmo quando há um cônjuge...

Em uma sociedade ainda patriarcal, a chefia da casa por uma mulher muitas vezes pode ser ligada à vulnerabilidade social, como a situação de abandono pelo marido, muitas vezes com filhos. Mas o levantamento mostra um novo quadro. A principal novidade foi o aumento expressivo do comando feminino em famílias nas quais há um cônjuge. Entre os casais com filhos, o número de mulheres chefes passou de 1 milhão, em 2001, para 6,8 milhões, em 2015, alta de 551%. Já no caso dos casais sem filhos, o crescimento foi ainda maior, de 339 mil para 3,1 milhões, salto de 822%.

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