Saúde mental

É possível herdar os traumas de nossos pais?

Especialistas explicam como situações traumáticas vivenciadas podem causar impactos nas gerações seguintes


Publicado em 27 de julho de 2023 | 07:00
 
 
 
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Em algum momento da vida, boa parte das pessoas pode ter vivido uma experiência que, aparentemente, não tinha explicação. Um incômodo com alguma situação, lugar ou até mesmo odor pode ter surgido sem que houvesse qualquer lembrança ou conotação negativa relacionada àquele contexto. Porém, existe uma justificativa para eventos como esses e ela pode estar em algo que tem sido investigado pela ciência ao longo dos anos: a possibilidade de que os filhos herdem traumas dos pais. 

Prova disso é um estudo desenvolvido por pesquisadores da Califórnia, nos Estados Unidos. Publicado em 2018, a pesquisa fez uma análise sobre dados de descendentes de homens que haviam sido aprisionados durante a guerra civil norte-americana. Embora não tivessem vivido os horrores do conflito e dos campos de prisioneiros dos Estados Confederados, os filhos e netos dos homens que haviam passado por essa experiência apresentavam taxas de mortalidade mais altas do que a população em geral.  

Conforme o estudo, filhos homens dos prisioneiros de guerra tinham 10% mais chances de morrer que seus pares a partir do momento que atingissem a meia-idade (entre 40 e 60 anos). A explicação para isso, segundo os pesquisadores, estaria na epigenética, uma área de pesquisa que investiga como o ambiente pode ativar determinados genes e silenciar outros. De acordo com esse campo de estudo, os traumas podem deixar uma marca química nos genes das pessoas, e essas marcas, então, podem ser passadas às futuras gerações.  

Como explica o psiquiatra Bruno Brandão, a situação não diz respeito a uma herança direta, mas sim a uma tendência maior para que o trauma seja adquirido. “O filho de uma pessoa que passou por alguma situação traumática, por exemplo, pode ter uma maior propensão à depressão”, exemplifica.  

Em outras palavras, o especialista explica que o material genético recebido por nossos antepassados não é repassado de forma inalterada aos nossos filhos. “De certa forma, ‘mexemos’ neles antes. Ou seja, aquilo que passamos para os nossos descendentes é resultado do que recebemos e do ambiente em que vivemos”.  

Perpetuação

As heranças negativas podem ser adquiridas também de outras maneiras, e não somente pelos genes. “Traumas e medos podem ser ensinados. Eu e você, por exemplo, não precisamos passar por um atropelamento para entendermos que atravessar a rua sem olhar para os dois lados pode ser perigoso. Neste caso, esse é um aprendizado útil. Mas, por outro lado, uma mãe ou um pai que passou por algum trauma e, como consequência, desenvolveu medo de escuro ou outro comportamento disfuncional pode ensinar para o filho, mesmo que de forma inconsciente, que o escuro é perigoso”, elucida Bruno Brandão. 

Ele explica que esses casos em que o ensinamento acontece aparentemente de forma involuntária é chamado de “condicionamento vicário”. Esse conceito define aquilo que é aprendido através da observação. Nesse sentido, as pessoas tendem a imitar o comportamento dos outros quando eles estão sendo positivamente recompensados e a evitarem comportamentos que são punidos.  

Há ainda outras maneiras de os traumas serem repassados. É isso o que explica o psicólogo clínico João Gabriel Grabe. “Podemos pensar que os traumas vivenciados por cada um de nós influenciam de diferentes maneiras a nossa forma de pensar, de nos relacionarmos com outras pessoas e também na nossa maneira de agir. Herdar os traumas também seria vivenciar as mesmas experiências traumáticas que nossos pais, havendo, assim, uma repetição de comportamentos e atitudes tidas por eles”, pontua. “Viver em uma família em que a agressividade é tida como algo normal pode fazer com que esse tipo de comportamento seja repetido em diferentes gerações e, consequentemente, perpetue determinados traumas”, exemplifica.  

O psicólogo explica ainda que o movimento inverso também pode acontecer, já que as atitudes tomadas pelos filhos podem adoecer os pais em diferentes graus. Nesse sentido, ele entende a herança dos traumas como uma forma de tornar comportamentos tóxicos perpétuos dentro de um contexto familiar.

Procurar ajuda é um passo importante para superar traumas 

Segundo João Gabriel Grabe, buscar auxílio é fundamental quando há sofrimento causado por situações ou contextos traumáticos. “A ajuda psicológica é essencial, porque primeiramente serão trabalhados os traumas individuais e, posteriormente, também serão trabalhados os sentimentos relacionados àqueles que causaram isso”, explica.  

O psiquiatra Bruno Brandão pontua que ressignificar os traumas também é um caminho para superá-los, ponderando que a ressignificação não significa esquecimento. “A pior coisa que uma pessoa pode fazer em relação a um trauma é tentar esquecê-lo. Isso porque, quanto mais você tenta se esquecer de algo, mais isso se solidifica em sua memória. Então, diferentemente do esquecimento, a ressignificação é lembrar dele sem despertar toda a resposta emocional envolvida no trauma. E isso, na maioria das vezes, é possível apenas com um tratamento adequado que vai envolver uma reestruturação cognitiva”, conclui.

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