Acervo fashion

Moda investe em parcerias com renomados artistas como forma de agregar valor a peças, que viram sonho de consumo


Publicado em 07 de outubro de 2018 | 03:00
 
 
 
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O diálogo entre a arte e a moda começou a ser travado lá atrás, de forma orgânica – há anos as obras de grandes artistas inspiram estilistas mundo afora. Nos anos 60, por exemplo, o francês Yves Saint Laurent (1936-2008) desenhou uma coleção que acabou tendo um de seus itens elevado à categoria de peça-fetiche: o vestido tubinho inspirado no grafismo elaborado com as cores primárias de Piet Mondrian (1872-1944). Em Minas Gerais, Ronaldo Fraga já homenageou, em coleções passadas, a arte de Candido Portinari e Athos Bulcão, para citar dois exemplos.

Mas se não é propriamente uma novidade, vale dizer que essa parceria tem dado o ar da graça com mais constância nos últimos tempos – e revelando-se benéfica a ambas as partes. De um lado, a moda atinge outro status. Do outro, a marca interessada em se valer do traço de um artista não raro paga por isso, o que, consequentemente, fomenta a instituição responsável pelo acervo – ou mesmo o próprio artista.

Exemplo recente se deu com a dobradinha entre o Van Gogh Museum, de Amsterdã, com a marca de sportswear Vans, que resultou em jaquetas, moletons e tênis estampados com estampas inspiradas em obras do holandês – uma oportunidade para que os traços impressos em telas como “Caveiras”, “Amendoeira em Flor”, “Girassóis” ou no autorretrato de Van Gogh ficassem, digamos assim, “acessíveis” aos meros mortais.

Em contrapartida, parte do lucro das vendas foi destinada à instituição, que cuida de preservar o legado e a obra de Van Gogh (1853-1890). Mesmo pontuando que o tema merece uma análise mais complexa (“não gosto de polarizar esta relação, classificando-a como benéfica ou não”), Luiza Oliveira, fundadora da Plural Espaço de Moda, ressalva: “Se essa aproximação ‘populariza’ a arte e leva discussões sobre ela a pessoas que, de outro modo, não teriam qualquer noção de arte, e se, de alguma forma, dá suporte financeiro e visibilidade a diversos movimentos artísticos, é claro que há benefícios em jogo”. Por outro lado, ela acha que quando a arte se torna mercadoria, o há um deslocamento da função da mesma “enquanto movimento questionador e isento da lógica capitalista”. E salienta que produtos com esse plus podem conquistar o público pelo viés do consumo, da estética, e “não porque se trata de pessoas engajadas com o universo artístico ou interessadas em cultura”, opina.

Incentivo

Bem, fato é que a Vans não foi a única a investir recentemente nesse universo. A Billabong também apresentou, mês passado, uma coleção que teve trabalhos colaborativos com as fundações que cuidam da memória de Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat. As peças estampadas com as obras assinadas pelos artistas foram fruto de uma parceria entre a etiqueta e a Andy Warhol Foundation for Visual Arts.

De volta ao Brasil, na semana passada, foi a vez de a Arezzo se unir à ilustradora paulistana Naia Ceschin, que faz parte do time da La Baraque Creative, da França. “É incrível ver sua arte aplicada em uma superfície completamente diferente! Isso traz uma nova visão, até em termos de criação. Sem contar que é uma forma de também de divulgar seu trabalho, de ver a sua arte em um universo ao qual você não está acostumado”, acredita Naia.

Ela reconhece que adaptar suas criações (em seu ateliê, geralmente feitas em telas e grandes superfícies) a acessórios como as bolsas e sapatilhas não foi exatamente uma tarefa simples. “São peças bem menores. É muito importante ter esse cuidado com as escalas e levar em conta essas dimensões na hora de pensar uma coleção de moda”, relata ela.

 

Peças que documentam épocas

Luiza Oliveira pensa que a moda se aproximou da arte no momento em que essa última se tornou parte do nosso cotidiano. “Falo de movimentos artísticos que romperam com a arte clássica e com os espaços tradicionais dos museus. Quando a arte se moderniza, há espaço para que ela e a moda se relacionem. A moda é moderna por nascimento e não compactua com as tradições. É por esta razão que o encontro de ambas tem uma demarcação histórica: a modernidade. Ambas também se relacionam bem porque se prestam à lógica do espetáculo”, atenta a docente.

Mas Luiza faz um parêntesis: “Entendo que, quem curte arte, queira comprar (um produto como os lançados pela Vans) e que quem curtiu só a estampa sem saber do que se trata também. E penso que o incentivo à arte, por meio da venda, é relevante. Mas, sinceramente, eu preferiria apoiar um artista local, algum movimento da moda em prol da nossa arte, dos nossos tão precarizados museus”, argumenta.

Como exemplo, ela cita a homenagem feita por Ronaldo Fraga às vítimas da tragédia de Mariana: “Ele apoiou a arte das bordadeiras da região, usou tecidos em linho feitos no Brasil... É a moda autoral local que tem mais o meu apoio, entende?”.

Por último, mas não menos importante, Luiza também lembra o fenômeno mundial recente de grandes grifes, como as italianas Gucci e Salvatore Ferragamo, criarem seus próprios museus: “É a moda entendendo que os objetos que produz são elementos de exposição museológica. Claro, peças de vestuário e acessórios, sem dúvida, de fato contam sobre nossa civilização, o desenvolvimento da sociedade, então, se tornam itens de museu, fazem parte da documentação histórica. Mas, quando uma grife se presta a criar o próprio museu, há outra lógica: é também pensar que a marca está preocupada em contar a própria história, eternizá-la, e mais que isso, trazer um valor a esses objetos que não está só no âmbito do material, mas também do simbólico”.

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