Embora conviva com animais domésticos desde a infância, foi na adolescência que a estudante de direito Priscila Abuan, 34, viu esse vínculo se tornar mais forte. “O primeiro cachorro de que tenho memória é o Tor, que era o pet da minha família quando eu tinha uns 5 anos”, recorda, dizendo que, ao longo dos anos, outros muitos vieram. “O mais marcante foi o Howver, que esteve comigo dos 14 aos 29 anos e foi muito importante para mim, me ajudando em um momento difícil, quando atravessei um grave problema familiar e enfrentei a depressão”, recorda.
Foi a partir da relação com o pet que tudo mudou. “O Howver me acompanhou quando me mudei para o Espírito Santo e, depois, quando retornei a Belo Horizonte. Ele viu meu filho (Arthur, hoje com 10 anos) nascer. E foi um parceirão para todos os momentos. Então, sim, eu o vejo como um membro da minha família, não apenas como uma posse”, sinaliza, explicando que atualmente é tutora de dois buldogues-franceses, a Pink, de 5, e o T’Challa, de 2 anos. “Eles vão com a gente para todos os lugares, dormem comigo e com meu filho e são bastante mimados”, diz, citando que se sente, de alguma maneira, mãe dos pets. “Para mim, é uma forma legítima de maternidade”, opina a estudante, salientando que, quando recebe visitas, já vai logo avisando que a casa pertence não apenas a ela e ao rebento, como também aos dois cachorrinhos.
E essa compreensão de Priscila a respeito das configurações de sua própria família está longe de ser uma exceção. Ocorre que esses arranjos multiespécie, que podem até soar estranhos para alguns, são uma tendência cada vez mais óbvia na contemporaneidade. Pelo menos é o que argumenta a socióloga norte-americana Andrea Laurent-Simpson, ligada à Universidade Metodista Meridional dos Estados Unidos. Para ela, a estrutura familiar ocidental está sendo remodelada e, hoje, já inclui espécies não humanas.
“Cães e gatos são tratados como filhos, irmãos, netos. Inclusive, a Associação Americana de Medicina Veterinária aponta que 85% dos tutores de cães e 76% dos tutores de gatos consideram seus pets parte da família”, argumentou a pesquisadora em uma entrevista publicada pela Faculdade de Humanidades e Ciências de Dedman, nos Estados Unidos. Esse entendimento, aliás, não é exclusividade das gerações mais jovens. Na casa de Sônia Maria, 67, o Fofinho, um cachorro de 5 anos, costuma ser chamado de “filho”.
“Eu entendo que os meus pets são entes da minha família”, garante a enfermeira aposentada, acrescentando que desde a adolescência adota cães da raça pequinês. “Sinto que eles me entendem e que são uma ótima companhia, tanto para mim como para minha mãe, que hoje tem 87 anos”, comenta. Sônia ainda sustenta que ter animais em casa é uma responsabilidade, mas que traz muitos ganhos. “É bom para a cabeça, porque nos distrai e nos obriga a sermos mais ativos. Eu, por exemplo, passeio todos os dias, de manhã e à tarde, com o Fofinho. Se não estivesse com ele, certamente ficaria mais sedentária”, observa.
Essa proximidade com os bichinhos se reflete também no processo de luto. “No ano passado, perdi o Toquinho, que já tinha 15 anos. Ele já estava bem debilitado, chegou a ficar cinco dias internado em uma clínica veterinária, mas não resistiu”, lamenta, mencionando ter sentido sua perda como sentiria a de um familiar.
Luto. “É justamente nos momentos de luto, quando o animal doméstico morre, que percebo o aparecimento das famílias multiespécie na clínica”, observa o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça.
“Os membros da família podem reagir a uma perda dessa como se estivessem perdendo realmente um membro da família, às vezes como se estivessem perdendo um filho. Assim, é claro que uma perda dessas pode desencadear sintomas de ansiedade ou de depressão”, avalia. “Devemos nos lembrar de que a vida contemporânea, especialmente nas grandes cidades, está, para muitas pessoas, mais solitária que a da geração passada. Isso significa que os pets podem ocupar um lugar de importância fundamental na vida de muitas pessoas, sejam crianças, adultos ou idosos”, complementa.
Tendência
Embora não tenha números objetivos, o psicoterapeuta reconhece ter a percepção de que a quantidade de arranjos familiares que incluem espécies não humanas está aumentando. “Acredito que podemos dizer que é uma tendência contemporânea. E podemos aliar essa tendência ao aumento de famílias que escolhem não ter filhos, embora isso não seja uma regra. Nesses casos, os animais de estimação podem ser tratados como filhos e, inclusive, servir de preparação para a chegada dos filhos humanos”, situa.
Mendonça ainda pondera que a definição de famílias multiespécie não contempla todas as famílias com animais de estimação, mas somente aquelas que tratam os seus animais como entes familiares. “Isso não significa necessariamente que essas pessoas dão o mesmo valor para os animais e os humanos – uma atitude evidentemente problemática. Significa, simplesmente, que elas têm os seus animais como membros da família e que é dessa forma que oferecem carinho, proteção e amor”, reforça, sinalizando que essa interação pode se parecer e muito com uma relação humana. Ele acrescenta que, na medida certa, esse tipo de estrutura pode, sim, promover sentimentos e atitudes muito saudáveis para a vida.
“Contudo, o exagero pode ser um problema. O apego excessivo aos animais de estimação pode fazer com que pessoas acreditem que só eles bastam, que não precisam das pessoas, pois com as pessoas ela só encontra decepções e frustrações. E, se isso é verdade, é verdade também que só com outras pessoas ela conseguirá compartilhar efetivamente a vida”, indica.
Bem-estar animal
A médica veterinária Adriane Pimenta da Costa Val sustenta que as famílias multiespécie são, sim, uma realidade e garante que, da perspectiva do bem-estar animal, não há nenhum mal nisso. “O problema é quando os tutores passam a tratar seus pets como se fossem um ser humano, pois, a partir desse momento, vamos atribuir papéis que eles não vão suprir, o que pode gerar frustração e aumentar o problema do abandono”, pondera.
Ela também cita que a humanização e o exagero em relação aos cuidados podem ser prejudiciais para o desenvolvimento do animal. “Há pessoas que impedem seus animais de ter contato com o chão. Algumas chegam a dar água para eles em uma mamadeira… Tudo isso será ruim para o pet, que terá autonomia reduzida e alto grau de dependência do seu tutor”, adverte.
Outra questão citada pela veterinária é o excesso de banho. “Tem gente que tem cachorro e não quer que ele cheire como cachorro. Mas esse exagero de higienização não é aconselhável, sendo estressante e podendo causar problemas de pele”, critica, lembrando que perfumes também devem ser evitados, pois deixam os animais nervosos e prejudicam a sensibilidade deles.
E, se já está claro que é preciso se policiar para que tanto mimo não se torne um transtorno para os pets, o excesso de carinho – à la Felícia – também deve ser evitado. “Forçar beijos e abraços, espremer os animais... Nada disso é confortável, gerando estresse”, sinaliza.