Após o processo de independência do Brasil, em 1822, pouco mudou para a grande maioria dos moradores do território que outrora fora colônia portuguesa. “A realidade nas ruas, longe dos palácios imperiais, era de escravidão, pobreza e analfabetismo. Havia, portanto, um país imaginário, desconectado do outro, real e perigosamente instável”, afirma o jornalista Laurentino Gomes, autor da trilogia “1808”, “1822” e “1889”, em que abordou o histórico da presença da monarquia no país, entre a chegada da corte ao Rio de Janeiro e a proclamação da República.
No momento em que chega às livrarias brasileiras o terceiro volume da trilogia “Escravidão” (Globo Livros), em que o jornalista revisa os mais diferentes estudos sobre o regime escravocrata no Brasil, Laurentino conversou com O TEMPO sobre as heranças deixadas pelo processo da independência, que chega ao bicentenário. Confira.
A proclamação da independência trouxe mudanças socioeconômicas para o Brasil? Ou nossa estrutura social se manteve estável pelas décadas seguintes?
A estrutura social vigente durante o período colonial se manteve inalterada depois da independência. Há uma orfandade no processo de independência do Brasil. Negros escravizados e indígenas pegaram em armas para lutar na guerra contra os portugueses. Alimentaram a ilusão de que poderiam ganhar a liberdade ou ter melhorias concretas de vida. Nada disso aconteceu. O resultado foi um Brasil de faz-de-conta, uma espécie de miragem, como se o país fosse uma ilusão de ótica, que aparentava ser uma coisa, mas na prática era completamente outro. Nas aparências, o Brasil monárquico se apresentava como um país mais civilizado, rico, elegante e educado do que de fato era ou seria no futuro. Tentava se apresentar ao mundo como um império destinado a ser grande, poderoso, desenvolvido, ilustrado – um “gigante adormecido em berço esplêndido”, como diria a própria letra do Hino Nacional. O imperador Pedro II, um homem culto, educado, amante das ciências e das artes, era o símbolo disso tudo. Esse Brasil de sonhos, no entanto, confrontava-se com outro, real e bem diferente, criando uma contradição difícil de sustentar no longo prazo. A realidade nas ruas, longe dos palácios imperiais, era de escravidão, pobreza e analfabetismo. Havia, portanto, um país imaginário, desconectado do outro, real e perigosamente instável. Na aparência, o Brasil do Segundo Império seria um modelo de democracia. As eleições aconteciam com regularidade exemplar. Os 50 senadores eram escolhidos pelo imperador em uma lista tríplice dos candidatos mais votados em cada província. A Câmara, com 120 deputados, era renovada a cada quatro anos. Os debates no parlamento eram elegantes e civilizados. Na aparência, tratava-se de uma monarquia constitucional e parlamentarista, regime pelo qual os eleitores escolhem seus representantes e, com base no resultado das urnas, o monarca nomeia o chefe de gabinete encarregado de organizar o ministério. Na prática, era bem diferente. As eleições eram de fachada, pautadas pela fraude e pela perseguição aos opositores. Havia um enorme sistema toma-lá-dá-cá, corrupção e promiscuidade entre os interesses públicos e privados.
Ao proclamar a independência, dom Pedro I conseguiu enfraquecer de alguma forma as vozes republicanas e iluministas do país?
Sim, o processo de independência brasileira, conduzido por dom Pedro I e José Bonifácio de Andrada e Silva, fez que projetos alternativos, republicanos e federalistas, defendidos em 1822 por homens como Joaquim Gonçalves Ledo, Cipriano Barata e Frei Caneca fossem reprimidos e adiados de forma sistemática, porque envolviam riscos de rupturas e fragmentações inaceitáveis para a elite brasileira. O imperador se tornou a grande avalista de um pacto nacional em que os fazendeiros, senhores de engenho, barões do café e traficantes de escravos apoiavam o trono, dividiam e controlavam o poder participando dos dois grandes partidos imperiais – o Conservador e o Liberal – e, em troca, recebiam a garantia de que seus interesses seriam preservados. Isso explica por que o Brasil nunca fez uma reforma agrária, foi o último país da América a acabar como tráfico negreiro, pela Lei Eusébio de Queirós de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de 1888, quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba.
O fato de o Brasil ter nascido sob um regime monarquista foi decisivo para que demorasse tanto tempo para acabar com a escravidão? O destino dos negros no Brasil poderia ter sido diferente se nosso processo de independência fosse semelhante ao dos nossos vizinhos hispânicos?
Na América espanhola, o processo de independência foi republicano e acompanhado pela proibição imediata do tráfico e da própria escravidão nas décadas seguintes. O México acabou com o tráfico em 1821. Colômbia, Argentina, Venezuela e Peru aboliram a escravidão entre 1851 e 1853, um quarto de século antes do Brasil. Entre a independência e a abolição, a elite agrária escravista brasileira procurou defender seus interesses com unhas e dentes. Na tarde em que o príncipe dom Pedro fez o chamado Grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, o Brasil estava empanturrado de escravidão. E assim permaneceria até quase o final do século XIX. Três principais argumentos a respeito da escravidão foram exaustivamente debatidos naquela época. Todos eles assentavam-se na antiga ideologia escravista que durante os três séculos anteriores servira de alicerce para o cativeiro africano. O primeiro afirmava que, no fundo, a escravidão era benéfica para os negros, ao retirá-los da ignorância e da barbárie do continente africano para incorporá-los à supostamente humanista e avançada civilização católica portuguesa que se instalava nos trópicos. Dizia-se também que o negro seria incapaz de sobreviver em liberdade, cabendo aos senhores brancos educá-los, orientá-los e tutelá-los de todas as maneiras possíveis – incluindo, obviamente, o uso do chicote e outros meios de punição e contenção, quando necessários à disciplina e ao bom funcionamento do sistema. Por fim, sustentava-se que a escravidão, embora condenável do ponto de vista humanitário, era “um mal necessário”. Dependente da economia agroexportadora, de mão de obra intensiva, a economia brasileira jamais poderia sobreviver sem o cativeiro africano. A abolição da escravidão levaria, portanto, à ruína nacional. Isso não aconteceu. A lavoura continuou tão próspera quanto antes e a mesma elite agrária que antes mandava no império continuou a mandar na república, na chamada “política do café-com-leite”, também conhecida como “república dos fazendeiros” até pelo menos 1930.
Quais são as principais particularidades da proclamação da independência do Brasil em relação aos outros processos de escravidão? Essa independência tão particular, proclamada pelo príncipe, deixa marcas estruturais que podem ser sentidas até hoje pelo povo brasileiro, 200 anos depois?
A formação brasileira se deu sobre pilares muito frágeis, como a escravidão, o analfabetismo, o latifúndio, a pobreza, a falta de comunicação num território vasto, de dimensões continentais, marcado por muitas rivalidades e diferenças geográficas e culturais. O país acumulou uma infinidade de passivos e dívidas históricas ao longo desses duzentos anos, que ainda hoje nos assombram e emperram nova caminha rumo ao futuro. Entre eles, o mais importante é o legado da escravidão. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental por mais de 350 anos. Estima-se que de um total 12,5 milhões de cativos africanos foram embarcados para as Américas ao longo de 350 anos. Cerca de 40% tiveram como destino as senzalas brasileiras. O Brasil fingiu que resolveu o problema da escravidão com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, mas nunca se preocupou em enfrentar o legado do sistema escravista. Nossos grandes abolicionistas do século XIX diziam que não basta ao país parar de comprar e vender gente como mercadoria. Era preciso também incorporar essa população à sociedade brasileira na condição de cidadãos com os mesmos direitos assegurados aos brancos descendentes dos colonizadores europeus. O baiano André Rebouças defendia a ideia de que, após a abolição, seria necessário fazer do Brasil uma "democracia rural", distribuindo as terras do latifúndio para que os ex-escravos e suas famílias tivessem acesso ao trabalho, à renda e à riqueza. Outro abolicionista, o também baiano Cesar Zama, afirmava que a alfabetização e a educação da população negra deveriam ser um complemento natural e obrigatório da Lei Áurea. Nada disso foi feito. Essa segunda abolição jamais aconteceu. O Brasil jamais educou, deu moradias, terra, renda e empregos decentes às vítimas da escravidão. Nunca promoveu os negros e mestiços à condição de cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres assegurados aos demais brasileiros. A população afrodescendente foi abandonada, marginalizada, explorada sob formas mal disfarçadas de trabalho forçado e mal remunerado. E assim permanece até hoje.
Podemos considerar a proclamação de independência do país como o primeiro golpe entre os muitos golpes que marcaram a história política do Brasil? Afinal, a monarquia conseguiu uma forma de se manter no poder no Brasil e evitar um movimento separatista republicano...
Sem dúvida houve um golpe contra a metrópole e a coroa portuguesa, mas não um golpe contra instituições brasileiras, como aconteceria diversas vezes mais tarde, porque, a rigor, o estado nacional só passaria mesmo a existir depois da independência. Portanto, seria incorreto falar em golpe de estado quando o próprio estado nacional ainda não existia. Isso não anula o fato de que a independência foi uma ruptura conservadora, controlada pela aristocracia rural escravista brasileira, que, dessa forma, conseguiu preservar os seus interesses e viabilizar um projeto único de país no continente americano, de uma monarquia cercada de repúblicas por todos os lados. O Brasil rompeu seus vínculos com Portugal, mas manteve inalterada a estrutura social até então vigente. Não aboliu a escravidão, não promoveu a educação, não redistribuiu as terras do latifúndio nem facilitou o acesso à riqueza e à cidadania por parte das camadas mais pobres da população, não mexeu em nada. Escravos, indígenas e pobres de maneira geral eram tidos como não cidadãos, que não podiam votar nem serem votados. Como resultado, o país foi edificado de cima para baixo. Coube à elite imperial conduzir o processo de construção nacional, de modo a evitar que a ampliação da participação para o restante da sociedade resultasse em caos e rupturas traumáticas. Uma tese defendida pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda afirma que foi o sentimento de medo, fomentado pela constante ameaça de uma rebelião escrava, que fez com que a elite colonial brasileira nas diversas províncias se mantivesse unida em torno da coroa. No Brasil de 1822 havia muitos grupos com opiniões diferentes a respeito da forma de organizar o jovem país independente, mas todos entravam em acordo diante do perigo de uma insurreição dos cativos – esta, sim, a grande preocupação que pairava no horizonte.
Neste 7 de setembro de 2022, o que há para ser comemorado sobre o bicentenário da independência?
Existem, obviamente, vitórias antigas, ainda do tempo da independência, que merecem comemoração. Ao contrário da América Espanhola, o Brasil não se fragmentou e se manteve como uma nação grande, integrada, de dimensões continentais. Nunca mergulhou numa guerra civil sangrenta como a dos Estados Unidos, chamada de Guerra da Secessão, em que cerca de 700 mil pessoas morreram para que o país se mantivesse unido e conseguisse abolir a escravidão. São conquistas importantes, mas há também uma jornada frustrante que, observada hoje, duzentos anos depois, foi marcada mais por fracassos do que por vitórias e conquistas. Tem sido muito difícil construir um país capaz de oferecer oportunidades para os brasileiros. Apesar de sua dimensão territorial e seus incontáveis recursos naturais, o Brasil de 2022 é uma nação pobre e desigual. Há carências básicas em vários setores. A qualidade de vida é precária no campo e na cidade. A devastação ambiental faz do país alvo de críticas e boicotes internacionais. Na educação, na saúde e na moradia, ainda há muito o que fazer. A herança da escravidão, responsável por muitos dos problemas, nunca foi devidamente enfrentada. Portanto, o Brasil chega ao Bicentenário da Independência com perguntas incômodas e desafiadoras pairando em seu horizonte. Os sonhos e promessas de 1822 eram grandiosos. Porém, transcorridos duzentos anos, poucos se realizaram. Nosso grande desafio hoje é enfrentar e resolver esses passivos históricos em um ambiente de democracia em que, pela primeira vez, todos os brasileiros estão sendo chamados a participar da construção do futuro. É um caminho longo e difícil, mas não podemos desistir ou renunciar a nossos sonhos.