Três meses

Atingidos pelas chuvas em BH relatam abandono

Moradores retornam às áreas de risco e tentam reconstruir suas casas. Limpeza dos locais não foi concluída

Por Marcelo da Fonseca
Publicado em 11 de maio de 2020 | 03:00
 
 
Beatriz Pires Foto: Uarlen Valério

Para milhares de famílias mineiras, o primeiro semestre de 2020 não ficará marcado pela pandemia do coronavírus, mas pela destruição causada pela maior chuva já registrada na história de Minas Gerais. Passados cem dias das fortes chuvas que devastaram centenas de cidades no Estado, limpar o barro da porta de suas casas, reconstruir telhados e lajes e jogar fora móveis irrecuperáveis ainda faz parte da rotina de muitos moradores nos bairros Várzea do Sítio e Morro das Bicas, em Raposos, e Jardim Alvorada e Vila Bernadete, em Belo Horizonte.  

O TEMPO retornou, na semana passada, aos bairros mais afetados pelas chuvas do início deste ano, na capital e na região metropolitana, onde pessoas morreram soterradas e milhares ficaram desabrigadas. Sem condições de pagar aluguel em outros lugares nem opções de melhores moradias, muitos retornaram para suas casas em áreas de risco, onde contabilizam os prejuízos e convivem com o medo de novas tragédias.  

De acordo com a Defesa Civil de Minas, até março deste ano, 74 pessoas haviam morrido por causa das chuvas no Estado – soterradas em deslizamentos de terras, arrastadas por correntezas ou afogadas em enchentes. No período chuvoso, de outubro até março, 82.692 mineiros ficaram desalojados (tiveram que deixar suas casas por danos) e 12.201 ficaram desabrigados (dependentes de um abrigo fornecido pelo poder público). No início deste mês, 3.548 pessoas permaneciam desalojadas e outras 2. 351 pessoas continuavam desabrigadas.  

Com 935,2 mm de chuva registrados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), janeiro de 2020 foi o mais chuvoso da história da capital mineira, volume de água que ultrapassou o triplo da média para o mês. O mês de fevereiro também foi de chuvas acima da média dos últimos 40 anos, o que prolongou as dificuldades para quem teve a casa atingida.  

“Já se esqueceram da nossa comunidade, das pessoas que perderam tudo em janeiro, dos entulhos que vieram abaixo e continuam espalhados pelo bairro”, conta Marco Antônio Maciel, 45, que viu seu veículo ser soterrado durante a tempestade que caiu entre os dias 24 e 25 de janeiro. “Ainda não consegui nem mesmo retirar os escombros de cima do meu carro para tentar voltar a trabalhar”, conta. Morador do bairro Jardim Alvorada, na região Noroeste da capital, Maciel deixou seu imóvel, junto com seus vizinhos, na noite em que várias casas desmoronaram.  

Cinco pessoas morreram soterradas no bairro na última semana de janeiro. Hoje, a maioria dos moradores já voltou ou está voltando para suas casas. Eles admitem que permanece o alerta da Defesa Civil para deixarem o local em caso de chuvas fortes. “Em caso de chuva, a orientação é sair do local imediatamente. Mas, agora, o período de chuvas já passou, e aqui muitas pessoas não têm condições de pagar aluguel ou de ficar nas casas dos parentes, então voltam para suas casas, para tentar retomar suas vidas”, diz Beatriz Pires.  

Na noite em que viu as casas vizinhas desabarem, Beatriz saiu de sua casa com os dois filhos e ficou alojada na escola em que trabalha. No final de março, a família voltou para o Jardim Alvorada, mas a rotina não é a mesma desde então. “A rotina aqui é de medo e receio de uma nova tragédia. Construí com meu marido um muro para reforçar nossa casa, mas o medo maior é que o barranco de cima não suporte e venha abaixo. Não houve qualquer trabalho para melhorar a situação nessa encosta, e se não fizerem obras neste período sem chuva, teremos problemas novamente no fim do ano”, afirma Beatriz.  

Presidente da Associação dos Moradores do Bairro Jardim Alvorada, Manacás e parte do Castelo (Ambja), Silvio César Camargo diz que, desde fevereiro, foram feitas várias solicitações para que a prefeitura de Belo Horizonte ajudasse na limpeza das encostas que desabaram e com a retirada de escombros, mas sem retorno do poder municipal. “Fomos completamente abandonados. O bairro tem ruas interditadas, ônibus não passam mais pelo trajeto, há escombros por todo canto, muita gente voltando para locais em situação de risco. Foram distribuídas cestas básicas em fevereiro para ajudar no momento mais crítico, mas isso não resolveu o problema, e precisamos de apoio para sair dessa situação”, cobra Camargo.  

Prefeitura diz que acolheu as famílias

A prefeitura de BH informou que 109 famílias do Jardim Alvorada foram orientadas a deixar as residências após as chuvas de janeiro, sendo que 75 receberam Bolsa Moradia (no valor de R$ 500). “As famílias foram orientadas a buscar acolhimento em rede de apoio pessoal (família, amigos, parentes e vizinhos). Nos casos em que isso não foi possível, as famílias foram encaminhadas para pousadas preparadas pela prefeitura”, diz a nota. 

Segundo a PBH, desde o dia 23 de março, mais de 3.200 cadastros foram feitos com famílias atingidas: “Foram disponibilizadas 500 vagas, em sete pousadas, por onde passaram 115 famílias (376 pessoas). Permanecem acolhidas 46 famílias”. A prefeitura informou, ainda, que está realizando análise dos projetos para reconstrução de locais afetados e que enviará nos próximos dias equipes para verificar a possibilidade da remoção de entulhos e escombros.  

“Não tem como voltar ao normal”

Na tarde do dia 24 de janeiro, ao sair de sua casa com os dois filhos em direção ao abrigo municipal, Cássia Mendes Santos, se despediu da vizinha Maria Estela e de seus três filhos, que também estavam de saída, após agentes da Defesa Civil alertarem para o alto risco de desabamentos na rua Antônio Fernandes de Melo, no Jardim Alvorada. Foi a última vez que Cássia viu sua vizinha e as crianças que costumavam brincar com seus filhos na porta de sua casa.  

Às 20h30 daquele dia, após três horas de chuva intensa, a encosta varreu a casa de Maria Estela, soterrando-a ao lado de seus três filhos pequenos. “Naquele dia, nós saímos para os abrigos mais cedo, quando interditaram. De noite, Maria Estela voltou para a casa. Eu tinha deixado meus filhos no abrigo e também voltei para buscar comida e roupa, estava saindo de casa quando ouvi o barulho do barranco vindo abaixo, e tudo se tornou completamente caótico. Nossos meninos brincavam juntos aqui na rua, até agora parece inacreditável que eles morreram”, conta Cássia.  

Passados pouco mais de três meses da tragédia que matou a família vizinha, ela está de volta à casa, que fica a apenas 15 m de distância do imóvel que foi soterrado. Cássia conta que passou um mês no abrigamento apontado pela prefeitura, mas que a rotina era complicada no lugar, até com denúncias de estupro. “Não conseguimos ficar no abrigo por mais tempo. Não era um lugar para as crianças. Então, resolvemos voltar. Meu barracão continua interditado, se chover temos que sair na hora, mas fazer o quê? Com o dinheiro da bolsa, não tem como pagar aluguel. As pessoas estão voltando para cá por falta de opção. Não tem como voltar ao normal, vamos só tocando cada dia mesmo”, diz Cássia. 

De acordo com a secretária municipal de Assistência Social, Maíra Colares, a opção da prefeitura para garantir maior conforto para as famílias foi pela instalação em pousadas, sendo que quatro foram reservadas exclusivamente para as pessoas afetadas pelas chuvas. “Tínhamos duas opções: ou fazer alojamentos em ginásios de escolas, com colchões no chão, ou criávamos uma alternativa mais digna. A mais digna que encontramos de um dia para o outro foi fazer a contratação das pousadas. Não são os mesmos lugares para as pessoas em situação de rua. Organizamos unidades exclusivamente para as famílias atingidas pelas chuvas”, explica Colares.  

A secretária informou que o caso do suposto estupro em uma das pousadas foi investigado pela polícia e foi descartado. No caso investigado, uma criança teria sido convidada por um homem que estava hospedado na pousada para ir ao parque, mas não foi confirmado após apuração.  “As famílias, e a gente respeita muito isso, não queriam estar naqueles lugares. Obviamente queriam estar nas suas casas. A gente compreende a insatisfação. Nenhum lugar, por melhor que seja, é igual a casa da pessoa”, analisa Maíra Colares.  

Vila Bernadete tem retorno mesmo com falta de infraestrutura

 

O medo de novos desabamentos se tornou parte da rotina dos moradores da rua 12, na Vila Bernadete, bairro da região do Barreiro. Os escombros das casas que foram ao chão durante as fortes chuvas de janeiro e soterraram 7 pessoas continuam praticamente do mesmo jeito após a tragédia. “Colocaram aquela tubulação para que a água empossada pudesse descer, mas está tudo a mesma coisa, o restante está do mesmo jeito, tijolos e restos de móveis espalhados no meio da terra. Um cenário de guerra”, diz Vicente Ferreira da Silva, um dos moradores mais antigos do bairro.  

Apesar de ter tido a casa interditada, ele voltou com sua família para o imóvel, onde fica durante o dia, e fez pequenas obras para segurar um dos muros que se moveu com o desabamento das encostas. “De noite, vamos dormir na casa da minha sogra, porque aqui ainda existe grande risco. Mas não temos como deixar nossa casa sem ter outro lugar para ir. Estamos ajudando os vizinhos a cuidar dos animais, como as galinhas que ficaram. Fiz essa escora de madeira no muro, que já mexeu alguns centímetros, para conseguirmos passar. A Vila Bernadete está numa situação muito triste”, conta Silva.  

Vizinho da casa onde houve o desabamento, o aposentado José do Porto Alves, conhecido no bairro como Juca, de 69 anos, também voltou para o imóvel e acompanha diariamente, com muita preocupação, a movimentação de terra atrás de seu imóvel. “Como vamos ficar na casa dos outros, pagando R$ 500 de aluguel? Não temos como sobreviver, não. Construí aqui com muito esforço, estou pagando empréstimo do material até 2023. Está muito difícil. Sabemos dos riscos e, se ficarmos até o próximo ano, com mais uma chuva, vamos ter a mesma tragédia”, lamenta Juca.  

Na manhã da última quinta-feira, debaixo de chuva, Juca mostrou para a reportagem o deslocamento de muros e encostas próximo à sua casa. “Vimos a morte dos vizinhos que nós vimos crescer, pessoas que convivíamos todos os dias. Tentei alguma ajuda na regional da prefeitura, no bairro Milionários, mas lá está fechado desde março, com a pandemia. Ligamos para vários órgãos, mas ninguém atende. Este ano está sendo um terror”, conta Juca. Segundo a PBH, das 18 famílias orientadas a deixar residências na rua da Vila Bernadete, 14 foram incluídas no programa de Bolsa Moradia.