Passos calmos, Artur*, 47, coloca-se ao lado do jazigo recém-aberto, afasta um monte de terra e a redistribui no espaço. Então, dispõe pá, enxada e outros instrumentos de trabalho ao alcance das mãos. Sua chegada parece prematura. Durante cerca de 15 minutos, ele apenas espera em silêncio, não busca distração nem na tela de um smartphone, tampouco entre pessoas próximas – nenhuma inquietação parece perturbá-lo.

Quando, finalmente, o carro funerário se aproxima, seguido por outros quatro veículos, e o rito fúnebre se inicia, o auxiliar de sepultamento se mantém discreto. Mesmo que o uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) provoque algum estranhamento e desperte olhares mais incisivos, sua presença segue quase imperceptível – ainda que essencial.

Há um pequeno discurso em tom de homenagem e despedida e uma breve, mas vigorosa, salva de palmas. Enlutado, o grupo – que usa máscaras e se organiza mantendo algum distanciamento entre si – só se afasta dali quando Arthur começa a “voltar a terra” sobre a urna fúnebre. O ato é símbolo da conclusão do rito de um último adeus aos mortos, presente nas mais diversas civilizações e que atravessa toda história humana.

Há uma década, Artur, como outros voltadores da terra – como o ofício é conhecido –, confere dignidade aos mortos e algum conforto aos sobreviventes. Em toda a trajetória, nunca imaginou que atravessaria momento tão delicado. “A gente, antes, não se preocupava tanto com os cuidados para não ter infecção. Mas, quando começou a pandemia, ficamos apreensivos”, lembra. “Soubemos como se previne e quais cuidados devemos tomar... Então, ficamos menos nervosos”, observa, completando que, ainda assim, toma uma série de cuidados sanitários quando volta para sua casa depois do expediente.

Constrangidos

Mas não é o temor de ser infectado a principal queixa de Artur e de colegas de profissão, que estão na linha de frente na lida de vítimas ou supostas vítimas da Covid-19. Rompendo característico silêncio, ele confessa: sente-se frágil. Estigmatizados, muitos dos voltadores de terra, também chamados de “coveiros”, evitam falar de seu trabalho.

“Ao circularem no seu meio social, muitos deles se sentem constrangidos pela reação das pessoas quando têm que falar sobre sua profissão”, observa a antropóloga Karenina Andrade, que já coordenou uma pesquisa sobre a autopercepção desses profissionais.

“Eles se sentem invisíveis”

“Certas ideias em torno do macabro, do abjeto, da morte – que ainda é vista como abjeta – parecem se estender a essas pessoas, que estão muito próximas dos cadáveres, contribuindo para esse processo de desvalorização e de estigmatização”, avalia Karenina, que é professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tudo isso corrobora para uma latente sensação de invisibilidade: é como se o trabalho deles fosse vergonhoso e sem valor, pontua a estudiosa.

A pandemia adiciona mais uma camada de preconceito: agora, há também o receio de serem alvos de atos de intolerância, como se fossem vetores da doença. Não por acaso, Artur preferiu que não fosse exposta, na reportagem, a própria identidade.

Mesmo que ainda não tenha havido um aumento da demanda por sepultamentos, o cotidiano dos voltadores de terra tornou-se mais delicado: eles passaram a ter que adotar uma série de medidas para garantir a segurança de si mesmos e a dos familiares deles, caso do uso e do descarte adequados dos EPIs. Alguns deixaram de dormir em suas próprias casas.

Além disso, com os rituais de velório suspensos, há maior pressão pelo papel por eles desempenhado. “São profissionais que precisam estar presentes e que devem respeitar a dor enquanto conduzem o sepultamento. O trabalho deles é essencial para esse momento de despedida, e isso fica mais evidente agora”, analisa Karenina.

Voltar a terra, afinal, é símbolo do encerramento de um ciclo – tanto que os administradores de um cemitério de Belo Horizonte, anos atrás, tentaram substituir a prática pelo uso de grama sintética, o que não funcionou: os sobreviventes só deixavam o local ao ver a terra lançada sobre a urna.

Atenção no momento de perda

Ainda que a emergência de saúde coloque em evidência a dramática luta pelo sepultamento digno das vítimas da Covid-19, permanece ausente um olhar atento aos voltadores de terra.

“Profissionais de saúde de um modo geral, estando à frente da luta contra o vírus, deverão, como tem acontecido em diversas partes do mundo, serem saudados pela população”, lembra o psicanalista Sérgio de Castro, completando que este é também um momento de valorizar os trabalhadores de serviços funerários.

O reconhecimento do valor do ofício de Arthur, porém, parece distante. “Existe uma situação que nos deixa inseguros: quando percebemos que o setor funerário é desprezado por autoridades”, reclama Marco Aurélio, gerente de operações do Grupo Zelo, que administra planos funerários em mais de 600 cidades de todo o país. A falta de prestígio se nota também em discursos de autoridades públicas, que usam a expressão “coveiro” de maneira jocosa ou pejorativa.

“Mais um exemplo dessa desvalorização são os decretos: na maioria dos municípios em que nós atuamos, o setor só foi lembrada como prestador de serviços essenciais depois de o decreto já estar pronto, o que levou prefeitos a realizarem alterações”, critica.

“Existe um setor, o funerário, que dá essa atenção para as famílias que sofrem uma perda - e isso devia ser lembrado”, conclui.