Não bastasse ter que viver debaixo do viaduto, os irmãos Edson Pereira dos Santos, 26, e Paulo, 32, improvisaram uma solução para aumentar o espaço da "moradia": fizeram um quarto dentro da estrutura. Assim, ficaram com uma espécie de "casa" de dois andares.
Mas o olhar desolado de Edson dos Santos, que é catador de material reciclável, não esconde a dura realidade que ele enfrenta. Há cinco anos os irmãos vivem no local, na via Expressa, no bairro Camargos, região Oeste da capital. Edson e Paulo usam móveis improvisados, fogão a lenha e têm pouco espaço para circular.
O primeiro andar da "moradia" fica no alto de uma rampa de cerca de 15 m. Trata-se de um corredor que funciona como varanda e cozinha. Para aproveitar melhor o espaço, os dois utilizam um buraco na estrutura do viaduto para dormir e guardar roupas.
A improvisação e a criatividade dos irmãos não esconde um drama social. Eles vivem num ambiente extremamente barulhento, sem a presença de vizinhos, parentes ou amigos, sem ocupação formal ou rotina nos horários de dormir, se alimentar e tomar banho. Como companheiro, os dois têm somente um cachorro.
De acordo com Edson, eles foram para o viaduto porque a casa onde moravam no bairro Madre Gertrudes, região Oeste, serviu de pagamento para a dívida do tráfico de um sobrinho. Ontem, Paulo não estava no viaduto.
Segundo Edson, eles revezam no trabalho de sair para catar garrafas, já que o risco de alguém queimar os pertences ou jogá-los fora é sempre grande. A atividade rende aos irmãos cerca de R$ 30 por semana e serve de fonte para pagamento da alimentação.
Edson explica que, para cozinhar e tomar banho, ele e o irmão utilizam água de uma nascente que fica do outro lado da avenida. Conforme o morador de rua, o líquido é armazenado em dois galões de 20 l e dura mais de dez dias. Um lugar no meio do mato serve como banheiro.
O cotidiano sob o viaduto é variado. "Aqui a gente vê muita coisa. Muita tragédia, acidente, atropelamento. Tem dia que tem comida, no dia seguinte não. Às vezes passo fome e tenho que pedir nas casas aqui perto. O sofrimento aqui é muito grande, a gente vai levando a vida como dá", disse.
Além das dificuldades do espaço físico, Edson enfrenta também problemas familiares. O irmão é alcoólatra e bebe cerca de duas garrafas de cachaça por dia. "Ele já não é muito certo. Quando não tem bebida fica nervoso e difícil de lidar", afirma.
A esposa, que também morava na rua, o deixou depois de várias discussões, muitas com uso de violência. Segundo ele, há meses não mantém relações sexuais e nem mesmo acredita que alguém possa se interessar por ele.
"Quem vai querer uma pessoa assim como eu, que mora na rua", questiona. Apesar da vida difícil, Edson o desejo de ter uma moradia, voltar a estudar e ter um emprego com carteira assinada ainda acompanha o morador de rua.
Moradores recebem assistência social
Na tentativa de mudar a situação em que vive, o morador de rua Edson dos Santos afirmou ontem que já recorreu aos serviços da Prefeitura de Belo Horizonte, mas que nunca foi atendido. "Já procurei a Assistência Social e eles disseram que iam mandar alguém aqui, mas ninguém veio", disse.
Mas, de acordo com a assessora da Gerência de Proteção Especial da Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social, Denise Magalhães, pelo menos Paulo e a companheira dele foram atendidos pelo programa Bolsa Moradia e tiveram acompanhamento familiar.
Segundo informações da gerência, Paulo não se adaptou ao benefício que conseguiu por desacato às condicionantes. O dinheiro do Bolsa Moradia deve ser utilizado para pagamento do aluguel de um imóvel, mas o casal não teria quitado a taxa e desapareceu.
A esposa de Paulo está morando numa casa mantida por uma Organização Não Governamental (ONG). Ainda de acordo com a gerência, os irmãos continuam sendo assistidos por técnicos da regional Noroeste. De acordo com Denise, a fiscalização e o trabalho de abordagem nessas áreas é permanente.
De acordo com Claudenice Lopes, membro da Colegiada da Pastoral de Rua, as ações de atendimento aos moradores de rua ainda se situam em um nível básico e não garante a todos a capacidade de reinserção por meio de uma atividade profissional ou moradia.
Ela também critica o serviço de limpeza da prefeitura, que retira os pertences dessas pessoas das calçadas.
Conforme informou Denise Magalhães, cerca de 253 famílias recebem hoje o benefício do Bolsa Moradia e são oferecidas a elas várias atividades como oficinas de salgados, mosaico, produção de blocos. Também podem utilizar um centro de referência com telecentro para inclusão digital.
Falta de referência dificulta reinserção
Segundo estudo estatístico realizado em 2005 pela Secretaria Municipal de Assistência Social, há em Belo Horizonte 1.239 moradores de rua. Os irmãos Paulo e Edson dos Santos são um retrato dessa população.
De acordo com a antropóloga Liliane Souza, especialista em antropologia urbana e professora do Centro Universitário Newton Paiva, a falta de referência pessoal e civil são traços marcantes dessas pessoas, que em geral sofrem com os problemas da falta de absorção de mão de obra, violência de todo tipo e com a ausência de suporte do governo, que não dá conta de atender a toda a demanda.
Edson dos Santos é analfabeto, mora na rua, não possui endereço fixo, não sabe o nome dos governantes da cidade e do Estado, votou pela última vez em 1994 e já não se reconhece na foto jovem da carteira de identidade, guardada junto com os outros documentos.
Segundo Liliane, o caos no qual essas pessoas vivem e a falta de uma rotina fazem com que eles não consigam se organizar ou ordenar o próprio espaço. Um dos riscos que eles podem sofrer, depois de muito tempo na rua, segundo a antropóloga, é a dificuldade de reinserção social, que só será garantida se houver apoio e assistência.