Sorridentes e sentadas uma ao lado da outra, as irmãs Maria Lopes, de 92 anos, e Maria Aparecida Lopes, de 66, conhecida carinhosamente como "Cida", não lembram nem de longe o semblante de medo e desespero de quando foram resgatadas durante o temporal que atingiu a vila Barrraginha, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, no fim de semana. O salvamento, registrado pelo fotógrafo Leo Fontes, foi a capa do jornal SUPER NOTÍCIA e, nesta terça-feira (21), elas receberam a reportagem em casa.
Sozinhas, após a morte dos outros irmãos, elas moram na comunidade há 51 anos. Bem dispostas, Maria e Cida têm uma vida ativa: de segunda a sexta-feira, ainda de madrugada, a caçula prepara o café, as duas se arrumam e vão para frente da TV: às 6h15 em ponto começam a rezar o terço acompanhando o padre Antônio Maria, que se apresenta em um canal católico.
Aos fins de semana, a oração começa às 5h15. E no último domingo (19), a rotina foi a mesma. Após a reza, Cida começou a preparar o almoço, as duas comeram e foram assistir TV.
"Aí começou a chover forte e nós desligamos as televisões. Quando vi já estava pisando na água, que entrou de uma vez, eu vim tirá-la do quarto, tinha muito barro e nós duas fomos pela enchente a fora. Entraram muitos ratos, lixo. Eu consegui levar a Maria lá para cima, depois a polícia chegou, arrombou o portão e tirou a gente de casa", contou Cida.
Maria foi a primeira a ser resgatada. Saiu no colo de um dos policiais. Cida queria pegar os documentos, mas os militares impediram e auxiliaram para que ela também saísse rápido.
"Eles falaram que documento depois a gente tirava outro, estavam preocupados com as nossas vidas. Depois que fomos resgatadas, a mãe dos meus sobrinhos, que mora no Novo das Indústrias, veio buscar a Maria, e eu fiquei aqui mesmo. A Defesa Civil liberou e dormi aqui. A Maria voltou ontem (segunda), não aguenta ficar longe de mim", disse a idosa.
Com a invasão da água no imóvel, que fica em um dos becos da vila, as duas irmãs perderam praticamente tudo. A geladeira chegou a ser arrastada na cozinha, as roupas das duas e móveis também se perderam em meio à lama. Aos poucos, a casa volta a ser arrumada. Lá na comunidade, os vizinhos falam que o imóvel é tipo uma "casa de boneca", com tudo no seu devido lugar.
Assista a um trecho da entrevista:
EMOÇÃO - Maria Lopes, 92, e Maria Aparecida Lopes, 66, foram resgatadas por policiais na enchente que destruiu a Vila Barraginha, em Contagem, no domingo. A foto do socorro estampou a capa do #supernotícia ontem. Vejam um trecho da entrevista com elas hoje. #otempo #radiosuper pic.twitter.com/6WGYUefuga
— O Tempo (@otempo) January 21, 2020
Rotina retomada
Mais caladinha, Maria tinha os olhos atentos a um programa de culinária de TV enquanto Cida conversava com a reportagem. A irmã mais velha gosta de ficar no quarto assistindo aos programas e novelas preferidos, e, aos poucos, retoma a rotina. Ri quando lembra que, de volta em casa, mais tarde vai assistir as "confusões de Carminha na mansão do Tufão", em referência à novela global "Avenida Brasil" – em reprise no "Vale à Pena Ver de Novo". "Agora eu estou bem", se limitou a dizer.
Cida está tentando retomar a rotina após o susto. Foto: Fred Magno / O Tempo
Tragédia de 1992
As irmãs Maria e Cida perderam muitos amigos na tragédia da Barraginha em março de 1992, quando 36 pessoas morreram durante um temporal. Elas também perderam tudo.
"A lembrança daquele dia é ruim demais, vi gente morrendo. Eu queria ajudar, mas a polícia não deixava, tiveram que me segurar. Tivemos que sair de casa, a Maria foi para casa de outros parentes em Divinópolis (região Centro-Oeste do Estado). Eu não fui, também não quis ir para o abrigo. Fiquei morando na rua por vários dias até poder voltar para casa", afirmou.
Mesmo ainda se recuperando do susto o último domingo, Cida tem forças para apoiar outras pessoas. Há 13 anos, ela trata um câncer de mama. "O que eu posso falar para as outras pessoas que perderam as coisas igual nós perdemos é ter fé em Deus e colocar nas mãos de Deus. A gente perde, a gente chora. Eu chorei muito porque em um minuto perdemos as coisas. Mas precisamos recomeçar. Mesmo sendo velhas, pobres e faveladas, a gente quer viver", finalizou.
Minientrevista
"Eu fico emocionada. Os policiais entraram em água suja para salvar minha irmã e eu"
Cida
Qual foi a sua reação quando a água entrou e começou a subir? "Foi um desespero total. Agora eu sei que nós duas não sofremos do coração depois de tudo que passamos".
O que sobrou na casa? "Nada, eu perdi tudo, tinha feito a compra de alimentos sábado e perdi. Mas não tem importância, não perdi a fé em Deus. Vou conseguir de novo".
Você já encontrou com os policiais que te salvaram? "Vi um deles ontem. Ele me perguntou: 'você lembra de mim?'. Eu falei que não esqueceria a cara dele nunca. Ele me respondeu: 'pois é, a gente procura fazer o melhor para as pessoas'. E eles fizeram mesmo, tinha uma policial que pegou rato com a mão para tirá-lo de perto da gente. Queria encontrá-la outra vez. Eu fico emocionada, nunca nem conversei com um policial ,e o que eles fizeram por mim foi muito".
E como foi ao saber que estava na capa do jornal? "Eu não imaginava aparecer em jornal, vi quando fui à padaria. Meus parentes lá de Divinópolis já viram também. Pessoal disse que fiquei famosa".