Mariana

‘Novo Bento’ só deve ficar pronto em 2021

Decisão judicial postergou prazo para entrega de distrito devastado pelo rompimento da barragem de Fundão; mineradora Samarco deve voltar a operar antes de moradores retornarem a vilarejo

Por Natália Oliveira
Publicado em 18 de agosto de 2020 | 03:00
 
 
Mudas cultivadas por Mauro Marcos para serem levadas ao ‘novo Bento’ já cresceram Foto: Flávio Tavares

O canto dos passarinhos às 4h30 era o despertador do aposentado José do Nascimento de Jesus, de 74 anos. A essa hora, ele cuidava dos animais, tirava o leite da vaca e fazia seus queijos. É com carinho que Zezinho do Bento, como ficou conhecido, recorda sua vida no antigo distrito de Bento Rodrigues, destruído pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, na região Central de Minas Gerais, em novembro de 2015.

Há quase cinco anos ele vive de aluguel na cidade, e as lembranças são parte do sonho de retomar a rotina. Mas a volta para casa ainda está distante quando se olha para a construção do “novo Bento”. O que se vê é um enorme canteiro de obras e apenas três casas erguidas. O prazo para a conclusão da comunidade venceria no próximo dia 27, mas foi adiado mais uma vez, agora para 27 de fevereiro do ano que vem. Zezinho do Bento e outras 212 famílias devem ver a Samarco, empresa responsável pela tragédia, voltar a operar antes de terem suas casas prontas, já que a mineradora pretende retomar as atividades no fim deste ano.

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“Estamos esperando há muito tempo. Não aguentamos mais viver de aluguel e na cidade, acordar e só ver paredes. A saudade da nossa comunidade e dos vizinhos é muito grande. A gente perdeu tudo, mas a memória de Bento nós não perdemos. Lá a gente tinha um laço forte. Durante as festas religiosas, tínhamos o maior prazer em limpar as ruas juntos, capinar e enfeitar tudo. É por isso que é tão importante ter nossa comunidade de volta. Queremos resgatar nosso modo de vida”, enfatiza o aposentado, que é o “fiscal” da comunidade e todos os dias, religiosamente, vistoria o canteiro de obras, mesmo que de longe, do centro de apoio às famílias, onde foi montado um mirante para observação do local. 

O novo Bento Rodrigues está localizado no distrito de Camargos, a 8 km do centro de Mariana. A previsão é da construção de 213 moradias, isso porque algumas das 231 famílias atingidas no distrito optaram por morar em outros lugares ou ainda não decidiram se vão para a nova comunidade. A construção foi planejada para respeitar os moldes da antiga Bento Rodrigues, e, embora a localização seja nova, o planejamento pretende respeitar a vizinhança, os nomes e a localização das ruas e dos bens públicos. Zezinho acredita que, para o novo distrito ficar pronto em fevereiro do ano que vem, o ritmo da obra terá que acelerar. 

De acordo com a Fundação Renova, estabelecida por meio de um  Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) para gerir os danos do rompimento, há 35 casas em construção no “novo Bento” – 16,4% do total. Mas a reportagem esteve no local no início deste mês e só encontrou três casas erguidas, sendo duas em fase de acabamento. “Se a cada cinco anos ficarem prontas duas casas, quando é que vamos ter nossa comunidade?”, questiona o empresário Mauro Marcos da Silva,de 51 anos.

Ele comprou uma casa na zona rural de Mariana para passar os dias de folga, mas diz que, há 15 dias, não visita o local porque não se sente adaptado. “Meu laço é com Bento Rodrigues. Vou para lá (na comunidade devastada pela lama) todo fim de semana. Deixo o conforto da minha casa e durmo na caçamba do carro, porque sinto falta é de lá. Recuperamos uma casa que foi atingida (na antiga Bento) e passamos algumas festividades, como Natal e Ano-Novo por lá”, relata.

Reflexos da tragédia

A angustiante espera para voltar aos seus lares tem levado os atingidos à depressão e ao consumo de bebida alcoólica, entre outros transtornos psicológicos. Pelo menos seis moradores de Bento Rodrigues morreram após o rompimento, segundo relato da comunidade. 

“As pessoas não aguentam a ansiedade. A gente vê elas ficando doentes psicologicamente e, depois, fisicamente. Duas que morreram eram novas, na faixa de 50 anos, e não tinham nenhum problema de saúde. Eu mesmo evito falar muito do Bento antigo porque senão eu começo a sofrer e não dou conta de continuar na luta”, enfatiza José do Nascimento de Jesus, de 74 anos, o Zezinho do Bento.

O empresário Mauro Marcos da Silva, de 51 anos, cultivou a esperança de retornar a sua rotina em vasos com mudas que seriam levadas para o “novo Bento”. “Todo ano definem uma data (de fim das obras) e depois adiam. A gente vai ficando pessimista. Cultivei umas mudas para levar, mas pelo visto os pés vão ficar enormes e eu não vou ter minha nova casa”, se entristece.

Silva conta que a maior preocupação é com as crianças e adolescentes, já que a cada ano que passa eles perdem o vínculo com a comunidade morando em casas alugadas na cidades. “Ficou cada um para um canto. Elas estão crescendo e se acostumando com a cidade. Tem menino que a gente nem reconhece mais”, diz.

A Renova declara que, desde o rompimento, os atingidos recebem atendimento psicossocial.

Mineradora

A Samarco informou, em nota, que voltará a operar após a implantação do sistema de filtragem, que está em andamento, e a conclusão das atividades de “prontidão operacional”, o que deve ocorrer até o fim do ano. 

A empresa pretende operar no complexo de Germano, em Mariana, e em uma usina de pelotização em Ubu (ES), com 26% da capacidade produtiva.

Renova diz que obra é complexa e minuciosa

A Fundação Renova, responsável pela reconstrução de Bento Rodrigues, informou que o novo prazo para entrega da comunidade (27 de fevereiro de 2021) foi estabelecido pela Justiça a pedido da Samarco, por causa da necessidade de “readequação nas obras”. Enquanto não têm suas casas, os atingidos estão em casas alugadas ou recebem uma compensação financeira para providenciar sua própria moradia.

Segundo a Renova, todas as decisões dos novos lares são tomadas junto com os atingidos. “Trata-se de um modelo único, com protagonismo das famílias no projeto. O principal objetivo do reassentamento é garantir que as moradias e as áreas onde estarão os equipamentos públicos atendam às necessidades levantadas pelos futuros moradores, preservando seus hábitos, relações de vizinhança e tradições culturais e religiosas”, enfatiza. 

A Renova ressalta que cada casa é desenhada de acordo com o desejo da família. “Por parte do poder público, também há necessidade de desenvolver e aprovar legislações relacionadas à construção dos novos núcleos urbanos”, justificou a fundação.

 

Atraso é maior em outros distritos

Quando os rejeitos do rompimento da barragem de Fundão “varreram” do mapa o distrito de Bento Rodrigues, eles arrastaram também parte de outras duas comunidades rurais de Mariana, na região Central de Minas: Paracatu de Baixo e Gesteira. Desde a tragédia, em 2015, ficou definido que as três comunidades seriam reconstruídas pela Samarco para tentar resgatar a memória, o estilo de vida e os laços entre os atingidos. Mas, se só 16,4% das casas estão em construção até agora no “novo Bento”, nos outros dois distritos o cenário é ainda pior. 

Em Paracatu de Baixo, há apenas oito das 98 casas em construção – 8% do total. A previsão era que as obras ficassem prontas no fim deste ano, mas elas também foram adiadas para 27 de fevereiro do ano que vem – assim como em Bento Rodrigues. 

Em Gesteira, somente o projeto conceitual da nova comunidade foi feito, e o terreno, adquirido. Não há nem mesmo uma data definida para as casas serem entregues. Apesar do sonho de retomar os laços de comunidade, quando olham para o andamento das obras os moradores ficam com pouca ou nenhuma esperança de voltarem para seus lares. 

“Achamos que seria tudo muito rápido porque a empresa é poderosa e tem muito dinheiro. Agora vemos que já se passaram cinco anos e só tem ‘esqueletos’ de construções na nova Paracatu”, reclama Luzia Nazaré Motta Queiróz, de 58 anos, morada de Paracatu de Baixo.

Segundo ela, os idosos vão perdendo a perspectiva de verem as novas comunidades prontas. “Nós vamos perdendo a nossa história e nossa tradição. O pessoal das comunidades na zona rural tem um jeito próprio de andar e de construir sua identidade. Isso tudo está se perdendo. Os meninos mais novos, que antes pediam a bênção para os mais velhos com alegria, hoje sentem vergonha”, lamenta Luzia.

Na decisão que concedeu novo prazo, a juíza Marcela Oliveira Decat de Moura justificou que, no novo Bento, o adiamento se deu por causa da necessidade de readequações em obras da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE). Em Paracatu de Baixo, o motivo, segundo a magistrada, também foram readequações de obras e atraso na emissão de um documento para intervenção ambiental.

O promotor de Justiça Guilherme Meneghin, que acompanha os atingidos, entrou com uma ação judicial pedindo que o prazo de 27 de agosto deste ano seja mantido. A ação ainda tramita na Justiça. Segundo ele, o adiamento impede a aplicação de multa por atraso, o que poderia acelerar as obras. 

“O Ministério Público de Minas Gerais sempre pedirá a entrega das casas no prazo fixado e, caso não seja cumprida tal obrigação, a aplicação da multa estipulada e das demais penalidades cabíveis, podendo chegar até a intervenção judicial nas empresas Samarco, Vale e BHP Billiton”, explica o promotor. 

Pandemia atrasou as obras, diz fundação

Embora não confirme se as obras ficarão prontas ou não em fevereiro do ano que vem nos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, a Fundação Renova alega que os prazos estão sendo tratados no âmbito de uma ação civil pública e que a Justiça foi devidamente informada sobre os impactos da Covid-19 nos trabalhos. Além de paralisações das obras, foi necessário reduzir em mais da metade o número de empregados por conta das medidas sanitárias de segurança.

“Importante também destacar que o retorno é gradual, demanda novos procedimentos de controle, e, portanto, as obras não acontecem com o mesmo ritmo estabelecido antes da pandemia”, justifica a fundação.

Ainda de acordo com a Renova, estão sendo priorizadas em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo as intervenções de infraestrutura, como esgoto, rede elétrica, abastecimento de água e pavimentação, que são mais difíceis de serem executadas no período chuvoso.

Sobre Gesteira, a Renova afirma que “todos os processos e prazos relacionados ao reassentamento estão em conformidade com o que foi definido pela Justiça”. A fundação alega ainda que aguarda a homologação do projeto conceitual na Justiça, protocolado em maio deste ano, bem como a definição sobre o abastecimento de água.