Guaicurus

O palco do amor

Amor, vaias e a mais pura insanidade se misturaram no palco da rua Guaicurus

Por DANIEL OLIVEIRA
Publicado em 31 de agosto de 2014 | 07:43
 
 
Virada Cultural de Belo Horizonte atraiu milhares de pessoas para a rua Guaicurus LINCON ZARBIETTI / O TEMPO

Prova de que o sagrado e o profano estão bem mais próximos do que se imagina, e de que o sujinho de hoje pode ser o hype de amanhã, a Guaicurus se tornou o reduto dos intelectuais, artistas, hippies, hipsters e jornalistas que sentiram um prazer quase subversivo em adotar o palco da rua durante a Virada Cultural. “Isso é fantástico, é um patrimônio”, refletia o professor de filosofia Max Reygson, enquanto olhava com um misto de brilho e baba para a performance de pole dance de Naiara Beleza no palco, no início da noite, por volta de 22h.

Ao lado da colega Márcia Queiroz, campeã brasileira de pole dance, Beleza se apresentaria novamente à 1h30 – reafirmando, ao som de canções como “Tainted Love” e “Ain’t no Sunshine”, as verdadeiras donas da Guaicurus: as mulheres que conhecem e sabem usar o poder que têm. Mas entre as duas performances, o palco foi tomado por dois shows com músicas que tinham mais a ver com os outros habitués da rua, contando o tipo de histórias que levam homens a se tornarem clientes dos estabelecimentos locais.

O primeiro deles foi Márcio Greyck. Entre clássicos do cancioneiro corno, como “Impossível Acreditar que Perdi Você”, e hinos da Jovem Guarda, ele levou as cerca de 300 pessoas presentes a transformarem as dores de amor em combustível para a maratona que se iniciava. “Eu gosto de Katy Perry, mas está bom”, opinou a pequena Mariana Martins, de apenas 10 anos, que visitava a Guaicurus pela primeira vez, carregada pela tia, fã de Greyck.

Enquanto o cantor batizava a rua de “palco do amor” – ou daqueles que, “apesar das mazelas e desilusões, continuam a acreditar no amor” – parte do público fazia rimas nada românticas com o nome de Marcio Lacerda, que havia chegado ao local pouco antes do show. "Aos 18 anos, frequentei o Montanhês. Tenho história aqui", afirmou o prefeito, ignorando o coro e continuando a acreditar no amor.

A segunda atração para corações maltratados da noite foi Marcelo Veronez. Com um estilo performático que só perdia para a dupla Beleza e Queiroz, ele apresentou seu show “Não Sou Nenhum Roberto”, recheado de canções da dupla Roberto e Erasmo Carlos. E como quem não tem uma história de amor cuja trilha é uma música do rei é ruim da cabeça ou doente do pé, o repertório fez sucesso. “’Detalhes’ me lembra do meu primeiro namorado, aos 17 anos. A canção parece muito com ele, com nossa história”, suspirou a estudante de biblioteconomia Sara Barbosa, de 34 anos.

Mas o grande nome da noite era o de Tom Zé. Quando ele subiu ao palco, pouco depois das 2h, o que eram 250 pessoas às 22h havia se tornado cerca de 2 mil, lotando a Guaicurus de expectativa pelo monstro da MPB. “Já fui bailarino e lembro quando ele fez trilha para o grupo Corpo. Estou muito ansioso para ver o que ele vai fazer”, comentou o auxiliar administrativo Carlos Henrique, que aproveitou a Virada e trouxe o namorado gaúcho Ezequiel Kaiser para conhecer a famosa rua.

O repertório do cantor misturou favoritas como “Tô”, “Fliperama” e também “Conto de Fraldas”, deleitadas pelo público entre um cigarro (dos tipos legal ou “super legal”) e outro. Mas o grande destaque foi uma marchinha composta por Tom Zé em homenagem à rua, que ele fez questão de ensaiar com o público repetidas vezes entre as canções: “Guaicurus, Guaicurus, toda menina aperta na medida / Guaicurus, Guaicurus, se não fosse tu, Belo Horizonte podia ‘tá’ fodida / Guaicurus, Guaicurus, carrega tua cruz que no buraco também tem luz”.

“Aqui reinam os malucos. E a insanidade é boa”, ponderou a gestora de RH Ana Paula Roque sobre o clima que dominava a rua. Disposta a levar a “Virada Cultural” ao pé da letra, depois de Tom Zé, ela e as amigas ainda voltariam para o Parque Municipal. E, no domingo, já tinham Maurício Tizumba e Dona Odete programados.

Para quem acha que essa animação é exclusiva dos jovens, a assistente social Raquel Baggio, de 62 anos, que voltou à Guaicurus depois de trabalhar por anos na esquina da rua com a Espírito Santo, estava ali para provar o contrário. “O corpo envelhece, mas a mente não. Que horas é o café na praça da Estação mesmo?”, perguntou, enquanto dançava apaixonadamente ao som de Tom Zé.