Meio ambiente

Serra do Curral: mineradoras conseguiram documentos de forma irregular

Suspensão da mineração veio em decisão da Justiça Federal; dívida da Gute Sicht com a PBH ultrapassar R$ 6,8 milhões

Qui, 26/01/23 - 21h50
Mineradora Global Fleurs estaria operando de forma irregular na Serra do Curral, área que fica acima da Ocupação Terra Nostra, próxima ao bairro Taquaril | Foto: Flavio Tavares / O Tempo

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A Justiça Federal suspendeu as atividades das mineradoras Gute Sicht e Fleurs Global, que atuavam na serra do Curral, em Belo Horizonte. A decisão da juíza Gabriela de Alvarenga Silva ocorreu depois de investigação da Polícia Federal (PF) que demonstrou que os documentos apresentados pelas empresas para a extração de minério foram obtidos de maneira irregular. A Gute, por exemplo, usou certidão de licença de licenciamento ambiental dada à atividade de terraplanagem para uma terceira empresa. Também utilizou-se de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para conseguir a licença junto à Agência Nacional de Mineração (ANM). A perícia descobriu que os TACs firmados com o Estado foram renovados várias vezes e apresentavam irregularidades. As mineradoras alegaram a falsa construção de garagem para minerar por um ano sem ter qualquer autorização. Mesmo após conseguirem permissão junto à ANM, elas não tinham a permissão da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), visto que a área é tombada. Três empresas e duas pessoas foram indiciadas pela PF.

O caso passou a ser investigado pela PF pelo fato do minério ser um bem da União e pela proteção ambiental ser de competência comum para todos os entes federativos, segundo a Constituição Federal. O órgão recebeu ainda denúncias de extração ilegal de minério na região. É válido destacar que a Gute Sicht seguia minerando na região, mesmo após ter sido impedida pela PBH. Em outubro de 2022, ela conseguiu liberação do poder Judiciário.

Na decisão da juíza Gabriela de Alvarenga Silva, a magistrada pontuou que as empresas Gute Schit e Fleurs Global não tinham, em 2020, licença para minerar. Elas teriam usado a liberação ambiental dada para a empresa Valefort para realizar a terraplanagem do espaço para acobertar a atividade de extração de minério. A liberação de licença ambiental para realizar a terraplenagem consiste no preenchimento de um documento eletrônico no site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad).

“O modus operandi dos investigados consiste na prática da atividade de terraplanagem de terrenos, regulares ou invadidos, sem autorização ou em discordância com o autorizado pela Prefeitura local, para dissimular a extração irregular de minério (pois o solo da região é rico em minério), comercializando o minério assim retirado para siderúrgicas ou empresas de beneficiamento de minério (conhecidas como “peneiras”), burlando, deste modo, a fiscalização dos órgãos ambientais competentes”, afirmou. 

PBH impede mineração

Em 15 de maio de 2022, a PBH impediu a mineração. Apesar disso, a Gute descumpriu a medida que determinava R$ 25 mil de multa diária. Procurada pela reportagem, o Executivo municipal esclareceu que nenhuma das cobranças foram pagas e que o valor total ultrapassa R$ 6,8 milhões. Noventa autos foram expedidos, sendo um de notificação, um de interdição, um por degradação ambiental e 87 por descumprimento da interdição.

A última autuação foi no dia 29 de setembro de 2022. “Constam inscritas em dívida ativa 89 multas aplicadas contra a mineradora, com valor atualizado de R$ 6.852.881,54. Os procedimentos para cobrança judicial mediante execução fiscal ainda não foram feitos, considerando as férias forenses”, informou em nota.

Pelas redes sociais, o prefeito Fuad Noman (PSD) se posicionou diante da decisão da 3ª Vara Federal Criminal de BH que foi considerada por ele como “acertada”. “A Prefeitura fará monitoramento intensivo no local para que a decisão seja cumprida”, prometeu o político.

 

 

Fleurs também multada

A perícia da PF verificou, no Portal de Transparência do Meio Ambiente, onde constam as Informações dos Autos de Infração da Semad, que a empresa Fleurs Global foi autuada 14 vezes, desde a implantação da planta de tratamento de minério e da pilha de rejeito. 

"Sendo três vezes em 2018, oito vezes em 2019 e três vezes em 2021. O valor total da autuação foi consolidado igual a R$ 2.151.473,36, com diferentes infrações ambientais", informou a magistrada.

Falsa garagem e uso indevido de documentos

A Valefort, empresa que teve liberação ambiental para realizar a terraplanagem no espaço, havia firmado um contrato com a Assembleia dos Santos para supostamente construir a garagem da Fleurs Global no local. O direito de minerar pertencia à Mineração Gute Sicht (antiga Boa Vista). No entanto, nunca foi construída uma vaga de garagem no local, conforme a perícia da PF. A atividade de terraplanagem, que precisa de uma autorização municipal, teve apenas a dispensa da licença ambiental por parte da Semad. 

A Gute Sicht usou a certidão de licença de licenciamento ambiental dada à atividade de terraplanagem para a Valefort e um TAC firmado com a Semad para conseguir, em 05/11/2021 a licença para minerar no local dada pela ANM. Porém, a empresa já estava atuando desde fevereiro de 2020.

É importante ressaltar que, conforme a Justiça, a ANM concedeu a autorização mesmo sabendo que a licença para a terraplanagem não estava no nome da empresa mineradora. Além disso, o TAC, firmado em julho de 2019, foi usado como uma espécie de licença ambiental. Não houve, então, nenhum tipo de estudo de impactos ambientais da atividade mineradora na área.

“Assim, sem qualquer estudo de impacto ambiental, esta certidão de dispensa de licenciamento para a atividade de terraplanagem obtida pela Valefort foi utilizada pela mineração Gute Sicht para obter a guia de utilização mineral junto à ANM. Contudo tal não poderia ocorrer, pois sequer a dispensa de licença ambiental havia sido expedida no nome da mineradora e não é possível utilizar a licença ambiental de outra empresa. Primeiro dos problemas”, esclarece a decisão.

Segundo a magistrada, a Gute Sicht conseguiu a autorização para explorar o minério “em tempo recorde”. “Para conseguir a autorização para lavra a Mineração Gute Sicht juntou o TAC firmado com a Semad em 07/05/2021 possibilitando a extração mineral sem o licenciamento ambiental. Assim, em um prazo de 1 ano e meio, conseguiu um documento que, de acordo com a perícia da Polícia Federal, para as outras empresas são necessários de 4 a 10 anos”. 

Irregularidades nos TACs e indiciamentos

A investigação da PF concluiu que os TACs assinados entre a empresa mineradora e o governo de Minas apresentam uma série de irregularidades. O primeiro documento foi assinado em julho de 2019. Depois, o acordo foi renovado em março de 2020 e em fevereiro de 2022.

A Justiça afirma que a renovação desse tipo de termo não foi correta, já que o TAC não é uma licença ambiental, documento essencial para a atividade minerária. Além disso, a renovação do termo chamou a atenção da Justiça, uma vez que houve descumprimento das questões acordadas. A Semad autuou as empresas e, mesmo assim, renovou o TAC.

Um dos pontos descumpridos foi a supressão da vegetação de Mata Atlântica sem qualquer compensação. “Desta forma, o descumprimento reiterado das cláusulas do TAC firmado em 2019 deveria ter provocado a rescisão do termo de ajustamento de conduta, porém, não só foi renovado, como as cláusulas de obrigações para a empresa foram retiradas, contrariamente ao interesse público e moralidade”, afirmou a juíza na decisão.

Indiciamentos pela PF

O então chefe de divisão da ANM, que concedeu a autorização para exploração do minério, foi indiciado pela PF. O servidor continua na agência, como membro da diretoria colegiada da ANM. O mandato dele se encerra em dezembro de 2024. Ele foi indiciado por prevaricação: uso do cargo público para realizar atos contra a administração em geral. Procurada, a ANM informou que “não se manifesta quanto às decisões judiciais proferidas, cabendo apenas cumpri-las quando determinado”.

O responsável pelas empresas Gute Sicht e Fleurs (que são do mesmo dono) também foi indiciado pela PF, bem como as empresas. O crime das empresas e do dono delas não fica claro na decisão, no entanto, é ressaltado que “os fatos noticiados demonstram sérios indícios do cometimento de crimes na atividade das empresas, sendo notório o prejuízo irreversível à coletividade com a continuidade da extração mineral em área tombada da serra do Curral pelo município de Belo horizonte e a interferência em unidade de conservação estadual sem qualquer estudo do impacto ambiental e seu licenciamento”. A Valefort também foi indiciada. É importante frisar que nenhum dos envolvidos se tornaram réus ainda.

‘Verdadeira organização criminosa’, dizem ativistas

Os fatos revelados na decisão da magistrada são para ativistas ambientais a revelação de um esquema criminoso que operava na serra do Curral. “A decisão mostra um cenário assustador. É uma organização criminosa que comete diversos crimes. É assustador ver os tentáculos desta organização dentro do sistema estadual de meio-ambiente. Tem que ser investigado”, afirma o ativista Felipe Gomes. 

Ainda sobre o desejo de mais investigação, Gomes defende a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Para o integrante do movimento Tira o Pé da Minha Serra, a decisão da juíza Gabriela tem um “peso gigantesco”. “Quando os crimes são expostos traz ânimo para a sociedade. A luta continua até a vitória”.

Jeanine Oliveira, do projeto Manuelzão, ressalta que a decisão evidencia o que vem sendo denunciado há anos pelos ativistas. “As empresas nunca foram outra coisa a não ser organização criminosa. O que demorou foi a justiça vir. Órgãos públicos foram conviventes invés de proteger o patrimônio público”. 

A ativista destaca a necessidade de proteger os recursos naturais do Estado, que acabaram sendo afetados com a atividade minerária, por exemplo. “Como estamos num sistema e Minas Gerais é muito cooptado pela mineração, o que tivemos foi uma grande vitória. Viemos de muitas derrotas. A mineração tem ampliado sua atuação em passos largos, enquanto as conquistas ambientais e preservação dos biomas estamos perdendo. O nosso Estado lidera a perda de Mata Atlântica, lideramos áreas de hectares queimados por queimadas e redução de área de conservação”, alertou.

O que diz a Semad

Poir meio de nota, a Semad informou que anteriormente já havia suspendido administrativamente as atividades das empresas Mineração Gute Schit Ltda e Fleurs Global Mineração Ltda, mas que elas atuavam "amparadas por liminares judiciais".

"A Semad tem conhecimento da decisão judicial mais recente sobre ambas, proferida pela juíza da 3ª Vara Federal, na última segunda-feira (23), que determinou a suspensão imediata da atuação das empresas, e cumprirá seu dever de fiscalização. Cabe frisar que o Estado não é parte desta ação judicial", finalizou. 

O que diz a ANM

Também procurada por O TEMPO, a ANM informou que não se manifesta quanto às decisões judiciais proferidas, cabendo-nos apenas "cumprí-las quando determinado".

"O Sr. Guilherme Santana Lopes Gomes é membro da Diretoria Colegiada desta ANM, no cargo de Diretor, desde 05 de agosto de 2021 com encerramento do mandato em 04 de dezembro de 2024", finalizou.

Atualizada às 08h05 do dia 27 de janeiro de 2023
 

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