A cada 19 horas e 55 minutos uma pessoa registra boletim de ocorrência por crimes de racismo, previstos na Lei 7.716/1989, ou por injúria racial em Minas.
Foram 256 casos entre janeiro e julho de 2020, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Se os dados são alarmantes, a subnotificação para esse tipo de crime e a dificuldade em se obter justiça e punir culpados tornam o cenário ainda mais desolador, conforme denunciam vítimas e estudiosos do assunto.
Chamada de “macaca” pela ex-chefe durante uma festa da empresa em 2017, a bacharel em direito Maíra Caroline de Faria, 24, lembra que, inicialmente, relutou em acionar as autoridades por temer que o processo trouxesse prejuízo para sua carreira ou implicasse em problemas para seus familiares.
Por outro lado, sentia que não teria paz enquanto não houvesse reparação. Em agosto deste ano, a juíza Fernanda Garcia, da 45ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, determinou que Maíra fosse indenizada em R$ 6.000.
A jovem não esconde a felicidade, mas pondera: “Sou uma exceção. A grande maioria dos negros não vencem processos relacionados a atos de racismo”, reflete.
Réus de casos de racismo tendem a ser absolvidos e costumam estar em posição de poder em relação às vítimas
As estatísticas, de fato, depõem contra as vítimas que buscam reparação: o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (2009-2010) revela que, entre 2007 e 2008, das 31 ações contra crimes desse gênero julgadas em Minas, 77,4% foram vencidas pelos réus e apenas 22,5% pelas vítimas.
Embora esteja há uma década sem ser atualizado, o levantamento é o único disponível sobre o tema no país.
Há nove meses, O TEMPO tenta levantar informações sobre decisões nas Cortes de Minas Gerais. Todavia, a reportagem tem esbarrado na incapacidade técnica do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) em recolher tais dados no sistema.
Mesmo empecilho enfrentado pelo professor do curso de ciências sociais da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Cleber Lázaro Julião Costa, que desenvolveu pesquisa sobre o assunto. Autor do artigo “Crimes de racismo analisados nos Tribunais brasileiros: que as características das partes e os interesses corporativos da magistratura podem dizer sobre o resultado desses processos”, publicado na Revista de Estudos Empíricos em Direito em dezembro de 2019, Costa relata ter tido dificuldade em encontrar informações sobre processos e pontua que “os bancos de dados virtuais não são alimentados em sua totalidade”.
Em sua investigação, o estudioso analisou casos de racismo julgados entre 2005 e 2012 cujos processos estavam disponíveis na internet. Ele verificou que os réus geralmente são absolvidos e constatou que, neste caso, os juízes tendem a ter menos trabalho: “Quando decidia pela condenação, a necessidade de articular as provas arroladas nos autos com a lei e demais recursos disponíveis era maior”, explica, informando que quando não havia punição era mais comum o uso de jurisprudências, sem um desenvolvimento mais depurado do caso em si. Além disso, “a maioria das decisões ou foi processada como injúria ou foi rebaixada para este tipo penal menor quando os crimes fossem contra negros. Quando a violência racial é direcionada contra judeus, estes têm a garantia de que o tipo penal racismo será preservado, pois todos os casos foram assim reconhecidos”, detalha.
No conjunto de processos esmiuçados por Costa, que é coordenador do Grupo de Pesquisa em Instituições e Desigualdades da UNEB, foi possível verificar também a presença de um componente hierárquico: “A maioria das vítimas ocupa profissões menos valorizadas, cuja exigência de escolaridade média e superior é menor. Já os réus possuem escolaridade mínima de ensino médio e ocupam altos postos funcionais, muitos deles que condicionam o ensino superior completo para o seu preenchimento”, indica. O fenômeno, escreve, está associado à manutenção da ideia de democracia racial: “Desde que cada uma saiba o seu lugar, tudo está bem. Os juízes parecem consentir esta ideia”, critica.
Diferença. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém usando elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem, o racismo atinge a coletividade, com atos que discriminam toda uma raça.
Denunciar é ato de coragem e incentivo a vítimas
A bacharel em direito Maíra Caroline de Faria acredita que a vitória obtida contra a ex-chefe na Justiça, de alguma maneira, tem o poder de devolver a autoestima e a esperança para outras vítimas de injúria ou racismo que buscam reparação.
Segundo ela, muitas foram as pessoas que recorreram às redes sociais para expressar solidariedade e para dizer como se sentiram representadas por ela. Denunciar também ajuda a encorajar outras pessoas a fazer o mesmo.
Embora expressivo o índice de boletins de ocorrência registrados em Minas pelos crimes de preconceito de raça e cor e por injúria racial, o número, provavelmente, não reflete a realidade, como avaliou o promotor de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Belo Horizonte, Mário Konichi Higuchi Júnior.
“Várias vítimas não dão vazão ao sentimento de revolta e de querer punição daqueles que as ofendem dessa forma”, afirmou ele, em entrevista concedida ao jornal O TEMPO no ano passado. Na época, ele comentava a absolvição de promotores de uma boate acusados por 30 pessoas de barrar a entrada de negros no estabelecimento. O medo e a vergonha também são fatores que levam muitas vítimas a silenciar o ocorrido.
Advogados oferecem serviço gratuito
Em Belo Horizonte, oito advogados antirracistas se uniram para enfrentar casos de preconceito.
Como muitas vítimas de violência racial não podem arcar com os custos de um litígio judicial, eles decidiram atuar de forma gratuita e voluntária, como explica Carlos Augusto Santos, um dos idealizadores do Respire Advocacia Antirracista.
“São, na maioria, causas trabalhistas, mas também há crimes virtuais e até de ameaça”, explica. “Vivemos em um país em que o racismo está em todos os lugares. No direito não é diferente”, pontua Santos.
Para ele, a mudança também deve ocorrer no Judiciário. “Os tribunais são espaços muito apegados às nossas tradições, que são racistas”, avalia.
Quem precisar de ajuda pode entrar em contato com os advogados por meio do perfil @respire.advocacia, no Instagram.