DESALENTO

Inflação corrói aposentadoria e idoso vai ao trabalho informal para sobreviver

Alta de gastos com plano de saúde, medicamentos e alimentação no Brasil pressionam pessoas acima de 60 anos a voltar ao trabalho; número de idosos atuando no mercado informal cresceu 83% desde 2019

Por Simon Nascimento
Publicado em 04 de julho de 2022 | 03:00
 
 
Edson Paula trabalha de 8h às 17h, de segunda a sexta, como engraxate e reformador de sapatos no Centro; aos finais de semana, a jornada é em um estacionamento Foto: Videopress Produtora

Há 53 anos, as calçadas das ruas Tupis e São Paulo, no Centro de Belo Horizonte, tornaram-se o local de trabalho do engraxate e reformador de calçados Edson Paula de Matos, 77. Aposentado há dez anos, por ter contribuído individualmente com a Previdência Social, o morador do bairro Concórdia mantém a rotina de lustrar os pares de sapatos dos clientes e de fazer consertos de segunda a sexta, entre 8h e 17h, para crescer a renda de um salário mínimo recebido via INSS. 

Além disso, aos finais de semana, trabalha em um estacionamento na região da Pampulha. Todo o esforço para ter um rendimento de dois vencimentos a mais por mês.  “Graças a Deus tenho saúde”, brincou Edson, lamentando a situação econômica vivenciada. “Toda a minha renda é em prol da minha família e da minha vida, mas as coisas estão difíceis. As despesas estão tão altas que às vezes nem acredito”, diz o idoso, que é mais uma dentre as milhões de vítimas da disparada da inflação no país, que corrói a renda do brasileiro.

A experiência de Edson é reflexo de uma crise que se agrava diariamente no Brasil e que resulta na volta do público da terceira idade ao mercado de trabalho, só que de maneira informal. Dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) mostram que, desde 2019, o número de idosos atuando nestas condições aumentou 83%. Atualmente, cerca de um milhão de brasileiros, que já cruzaram a faixa dos 60 anos, recorreram à informalidade para sobreviver e pagar as contas, cada dia mais caras. 

E isso considerando apenas as estatísticas do Sebrae, que tratam de quem formalizou o cadastro de Microempreendedor Individual (MEI), sem levar em consideração quem atua sem nenhum amparo legal como motoristas de aplicativos, por exemplo. O contingente na informalidade é tão alto que já chega à metade do total de 2,1 milhões de integrantes da terceira idade que trabalham com carteira assinada no país, conforme o Ministério da Economia. 

O comportamento de volta ao campo profissional é influenciado por uma inflação rígida sobre itens essenciais. Os gastos com alimentação subiram quase 14% nos últimos 12 meses, enquanto os custos com habitação, como contas de água, luz, botijão de gás, aumentaram 9,57%. O encarecimento também impacta o acesso a serviços de saúde: medicamentos tiveram alta autorizada de 10,8% para este ano, enquanto os planos de saúde vão ter os preços reajustados em até 15,5%

“O preço da carne, do gás, da conta de luz... Tudo está arrebentando com o brasileiro. Eu trabalho de 8h às 17h porque minha esposa não me deixa trabalhar mais, se não eu trabalharia. A idade não me pesa”, contou Edson ao lembrar dos gastos mensais. Somente o plano de saúde consome um salário do que ele ganha mensalmente. O esforço adicional após a aposentadoria também é uma realidade para Maria de Lourdes Avelino, de 63 anos, moradora de Igarapé. A idosa trabalhou por 30 anos para uma família, onde teve a carteira assinada. 

Após a aposentadoria, há seis anos, ela manteve a atuação, mas reduzida a dois dias da semana, e sem vínculo trabalhista formal. As faxinas extras acrescentam R$ 600 mensalmente ao orçamento de um salário mínimo. “Eu faço isso para ajudar na minha renda. Não é muita coisa, mas dá para levar. Se tivesse condição física, eu trabalharia a semana inteira, mas moro muito longe”, diz ela ao se referir da distância entre a cidade da Grande BH e o bairro Palmares, onde faz faxina, na região Nordeste de BH.

Nos dias em que ela atua como diarista, às terças e sextas, ela sai de casa às 5h para iniciar a jornada 7h. O trabalho é encerrado às 17h, mas em função do longo deslocamento, só chega em casa após 20h. Para economizar, ela ainda caminha por cerca de 20 minutos, após chegar no centro de Igarapé, até a casa dela. “O mototáxi é R$ 8, mas com esse dinheiro eu consigo comprar o pãozinho”, sorriu Maria ao lembrar do encaixe no orçamento.

Na rotina mensal, os gastos com água, luz e as compras de sacolões e supermercados estão pesando mais o orçamento. “Eu já nem como carne mais, cada dia está aumentando mais”, conta a idosa que tem fatiado as compras mensais. "Se eu comprar tudo que precisa, vou gastar quase R$ 2 mil", calcula Avelino que é praticamente cega do olho esquerdo e precisa de uma injeção mensal, orçada em R$ 3.000, para evitar a perda de visão no olho direito em função de um aneurisma. 

Após um longo processo, ela conseguiu que o medicamento fosse fornecido pelo Estado, assim como remédios de controle de diabetes e hipertensão. “Se eu tivesse que pagar, não enxergava mais”, acredita. A situação de idosos como Edson e Maria de Lourdes, conforme a analista do Sebrae Minas, Ariane Vilhena, deriva da necessidade de compor as rendas. “Muitas vezes essas pessoas são arrimo de família e a principal renda. Então é uma necessidade para ter estabilidade financeira em todo núcleo familiar”, explica. 

Cortes e revolta 

Se a informalidade é opção para muitos idosos, outros não têm mais saúde e disposição para enfrentar jornadas de trabalho após a aposentadoria para adequar a renda aos gastos mensais. A matogrossense Rosana Varela, de 62 anos, se mudou para Belo Horizonte há 20. A aposentadoria de dois salários veio em 2020, já durante a pandemia, após mais de duas décadas atuando no mercado de congressos. “Mas hoje está valendo como se fosse meio salário, isso em relação ao que a gente tinha de padrão mínimo supérfluo de gastos”, contabiliza.

Ela e o marido, que não recebe aposentadoria por ser de outro país, se mudaram para a casa da mãe recentemente para eliminar custos. O plano de saúde do casal também foi cancelado, em novembro passado, após chegar ao valor de R$ 1.300. “O preço dos remédios está nas alturas e muitos a gente não consegue encontrar no posto. Alimentação? Meu Deus do céu! Cada ida ao supermercado é um grito, mesmo comprando só o estritamente necessário”, lamentou. 

Na casa dela, a palavra de ordem é contenção. “Vivemos em função disso. É necessário? Compra. Se não é, não compra. E com isso vai embora um pouco da nossa alegria”, Varela. Viagens de lazer e até idas esporádicas em restaurantes também saíram da rotina. “Uma hora é culpa da pandemia, outra hora guerra na Ucrânia. Sempre tem um culpado, mas não tem vontade política, social, humana de querer resolver essa situação”, criticou a idosa quando indagada sobre a atuação do Estado frente à inflação. 

Informalidade aumenta em meio ao desemprego 

O aumento na informalidade registrado pelo Sebrae pode estar relacionado à escalada do desemprego na terceira idade. Uma pesquisa feita pelo professor Mário Rodarte, da Faculdade de Economia da UFMG, identificou que as demissões no público acima de 50 anos aumentaram 166% no Brasil, entre 2012 e 2021, contra uma média nacional de 77%. Os dados foram coletados junto às pesquisas trimestrais feitas pelo IBGE. 

Na avaliação do docente, o cenário de idosos na informalidade é trágico. Ele explica que quem recorre a esse meio, geralmente, não encontra outra saída. “É a combinação de desemprego e inflação. E se a gente entende que essa inflação grande se dá em um momento de desaquecimento e que os salários não crescem de acordo, a situação se torna ainda mais trágica”, analisa. 

O professor defende que nos segmentos trabalhistas em que a aposentadoria acaba sendo reduzida quantias baixas deveria haver uma política compensatória. Ele lembrou que o país nos últimos anos deixou de realizar uma política de valorização do salário mínimo calculada tendo como base o crescimento do PIB do ano anterior e a inflação. “O fato porém é que isso deixou de ser obedecido e o crescimento foi pífio com reajustes abaixo da perda inflacionária, já que a inflação tem aumentado”, detalha. 

Outro problema, conforme o professor, está na própria disposição do mercado formal de trabalho. “O mercado está mais exigente porque o ritmo de crescimento das vagas está muito pequeno. E aí você mal ocupa as pessoas que estão chegando das universidades, do ensino técnico. É lógico que essas pessoas vão ser mais privilegiadas, mas é uma situação flagrante de insuficiência do setor produtivo em gerar mais postos de trabalho”, complementa Mário Rodarte.